Inquérito: Dar o estatuto de santo a um Papa é importante?

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AFP

Três perguntas a Anselmo Borges, João César das Neves e Maria João Sande Lemos

1 – Dar o estatuto de santo a um Papa é importante? Os dois papas que vão ser canonizados já tinham sido proclamados beatos, o que muda com o facto de o Papa Francisco os declarar santos?

2 – No actual momento que a Igreja atravessa, o que representa a decisão do Papa Francisco de avançar para a canonização de João XXIII? Que mensagem está o Papa a passar?

3 – O que acrescenta a canonização de João Paulo II ao seu legado e tendo em conta o papel que desempenhou no século XX?

Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia na Universidade de Coimbra
1. É normal, em todas as instituições e sociedades, lembrar e honrar figuras eminentes. Assim, também na Igreja, desde os primórdios, se venerou a memória dos mártires, e, depois, dos “confessores”, cristãos exemplares. Também neste domínio há o perigo de abusos, como canonizar o poder. Uma canonização envolve muitos funcionários e muito dinheiro, o que pode levar a discriminações. Pergunto sempre: porque não se canoniza o Padre Américo e casais exemplares? A canonização é um acto papal oficial que coloca alguém na lista dos santos, porque praticou de modo exemplar e até heróico as virtudes humanas e cristãs, sendo digno de culto público universal.

2. A canonização de João XXIII, o Papa que abriu novas fronteiras, dá-se em simultâneo com a de João Paulo II, como aliás já tinha acontecido aquando da sua beatificação, associada à de Pio IX, um Papa ultraconservador que condenou o mundo moderno. Há aqui uma tentativa de contrapeso. Significativamente, João XXIII é canonizado sem necessidade de um milagre. O Papa Francisco estará assim a dizer que o milagre do “Papa Bom” é o Concílio Vaticano II, que é preciso retomar com vigor, depois de quase ter sido congelado.

3. De fé profunda, corajoso, João Paulo II viajou pelo mundo como mensageiro da paz, reafirmou os Direitos Humanos, contribuiu para a queda do Muro de Berlim, perdoou àquele que quis assassiná-lo, reuniu os representantes das religiões mundiais para a oração. Ganhou a simpatia do povo, que queria a sua rápida canonização. Ao mesmo tempo viveu grandes contradições: pediu perdão pelas culpas da Igreja, mas condenou grande número de teólogos e pôs travão aos horizontes abertos pelo Vaticano II. As suas viagens deixaram a Cúria entregue a si mesma e a Igreja numa crise profunda, com uma herança dramática devido ao modo como terá lidado com a pedofilia do clero e a figura perversa do fundador dos Legionários de Cristo. Por isso, sem negarem que é um homem de Deus, muitos, incluindo o Cardeal Martini, põem em questão a oportunidade da canonização.

João César das Neves, economista, professor da Universidade Católica

1. Dar o estatuto de santo a qualquer pessoa é importante apenas pelo exemplo e auxílio que presta aos cristãos. A Igreja desde o princípio tem tido o cuidado de proclamar aqueles que sabe estarem no Céu, como orientação e ajuda para os que ainda se encontram a caminho de lá. A única diferença entre a beatificação e a canonização é que a primeira permite culto particular, na diocese ou comunidade respectiva, enquanto a segunda abre ao culto universal. Depois de pronto o processo, que inclui um milagre para a beatificação, pede-se uma segunda confirmação do Céu, através de outro milagre, antes de apresentar o santo à Igreja Universal. Neste caso a diferença é pequena porque os dois papas, sendo personalidades universais, já tinham culto universal desde a beatificação.

2. Penso que é errado tratar este tema como uma decisão do Papa, para mais com intuitos mediáticos ou políticos. O processo é instruído pela Congregação para as Causas dos Santos e tem procedimentos complexos e sólidos. As canonizações só avançam quando cumprem os seus requisitos muito exigentes. No entanto a decisão particular de juntar as duas canonizações na mesma data pode ter um significado particular. É errado tentar especular, mas acho que a ideia de não canonizar João Paulo II sozinho, mas juntá-lo a outro grande Papa do século XX, pode significar que ambos eram servos da Igreja. Não estamos a produzir um culto de personalidade individual, mas a indicar caminhos de amor e serviço.

3. O legado é o que é, e nada há a acrescentar. A canonização serve apenas para confirmar a santidade da grande obra de S. João Paulo Magno, que iluminará o caminho da Igreja durante muito tempo.

Maria João Sande Lemos – Movimento Internacional Nós Somos Igreja - Portugal

1. Parece-nos um endeusamento desnecessário – a instituição a promover os seus próprios membros mais importantes - o que não é correcto, obviamente. Muito mais importante é recordar que, tal como se insiste na Encíclica Lumen Gentium, saída do Concílio Vaticano II, todas as pessoas baptizadas são chamadas à santidade. Também alguma coisa não está certa quando analisamos as estatísticas: 85% dos canonizados são do sexo masculino e destes a grande maioria pertence à classe clerical. E estamos perante duas pessoas bem diferentes: enquanto há muito se esperava o reconhecimento da santidade do 'bom' Papa João XXIII, há fortes correntes na Igreja, mesmo entre a hierarquia, que não concorda com esta canonização apressada do Papa João Paulo II.

2. O Papa Francisco perante a pressão que havia dos sectores mais tradicionalistas da Igreja, em canonizar o Papa João Paulo II, achou por bem juntar o processo do papa João XXIII, que estava arrumado numa gaveta. Talvez o Papa Francisco também nos esteja a dizer o seguinte, recordando o Evangelho: "na casa do Senhor há muitas moradas", ou seja dentro da Igreja há várias correntes, várias perspectivas e tal não é dramático mas simplesmente humano e temos que nos respeitar e amar mutuamente.

3. Para além de tudo o que de positivo realizou, o percurso do Papa João Paulo II levanta muitas questões que, a nosso ver, não deveriam permitir esta canonização tão célere, a saber: a inacção da Igreja a nível central face aos gravíssimos casos de abuso sexual por parte de alguns membros do clero, que foram denunciados em todo o mundo; o apoio facultado ao Padre Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, mesmo depois de se saber que ele era não só um abusador sexual mas também um escroque; a forma como permitiu que fossem acusados de desvios doutrinais para cima de cem teólogos e teólogas não lhes dando sequer a oportunidade de serem ouvidos/as.

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