Índia quer impedir exibição de documentário sobre a violação de Deli

A brutalidade do crime chocou um país, obrigado a olhar para si próprio. A entrevista a um dos violadores, que culpa a vítima, parece ser demasiado para o Governo da Índia.

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Uma marcha de estudantes depois da violação de Jyoti Noah Seelam/AFP

O Governo fala de uma “conspiração internacional para difamar a Índia” e quer impedir a exibição do documentário co-produzido pela BBC não só na televisão indiana mas nos canais internacionais. Num apelo ao primeiro-ministro Narendra Modi, a autora, a britânica Leslee Udwin, defende que a Índia devia “receber este filme de braços abertos”, como “uma oportunidade para continuar a mostrar ao mundo como tem mudado desde este crime hediondo”.

Talvez a Índia não tenha mudado assim tanto desde a noite em que cinco homens e um adolescente violaram repetidamente e espancaram a estudante de fisioterapia Jyoti Singh enquanto conduziam, à vez, o autocarro onde ela entrou com um amigo depois de uma ida ao cinema, em Nova Deli. Há uma violação na Índia a cada 20 minutos, mas foi o crime contra Jyoti, de 23 anos, que provocou um mês de manifestações em que mulheres e homens defenderam os direitos das mulheres, no que Udwin viu como “uma primavera árabe da igualdade de género”.

A documentarista passou dois anos a filmar esse movimento e a investigar violações no país. “O que me fez deixar o meu marido e os meus dois filhos durante dois anos não foi tanto o horror da violação mas a erupção extraordinária e inspiradora nas ruas. Um grito de ‘basta’. Multidões de homens e mulheres comuns, dia após dia, a enfrentarem uma repressão feroz do Governo. Estavam a protestar pelos meus direitos, pelos direitos de todas as mulheres. Isso deu-me optimismo”, explicou Udwin ao jornal Guardian.

No documentário, India’s Daughter, Udwin entrevista um dos violadores de Jyoti, entre outros homens condenados pelo mesmo crime. São essas entrevistas, onde as vítimas são descritas como culpadas e os criminosos não expressam remorsos que desencadearam a polémica. A polícia diz que as declarações dos violadores “estão a criar uma atmosfera de medo e tensão” e conseguiu em tribunal uma providência cautelar para travar a exibição.

“Não é possível aplaudir só com uma mão – são precisas duas. Uma rapariga decente não ia deambular por aí à noite. Uma rapariga é mais responsável do que um rapaz por uma violação”, afirma Mukesh Singh, um dos violadores, num excerto da entrevista incluído no filme. “Ela devia ter ficado calada e permitido a violação. Assim, nós tínhamo-la abandonado depois de a violarmos e só teríamos batido no rapaz.”

Jyoti lutou contra os atacantes e sobreviveu 13 dias com inúmeros ferimentos internos causados pelas violações e pela barra de ferro com que foi espancada. Mukesh Singh também descreve o momento em que o adolescente do grupo “pôs a mão nela e puxou qualquer coisa, eram os intestinos”. Udwin entrevista vários violadores. Um deles, Gaurav, um homem de 34 anos que violou uma menina de cinco, diz que a sua vítima “era uma pedinte, a sua vida não tem valor”.

O ministro do Interior, Rajnath Singh, diz que a entrevista ao condutor do autocarro, que recorreu contra a condenação à morte, não foi autorizada, o que Udwin desmente, e garante que o seu Governo “não vai permitir que ninguém beneficie disto para ganhos comerciais”. “Podemos banir o filme na Índia. Mas isto é uma conspiração internacional para difamar a Índia. Vamos ver como é que o filme pode ser proibido no estrangeiro também”, disse o ministro dos Assuntos Parlamentares, M Venkaiah Naidu.

A exibição do filme ou de partes destas entrevistas foi proibida no país, onde o documentário deveria estrear domingo, dia internacional da mulher, no canal NDTV, e Singh diz que a BBC já recebeu uma notificação para não o exibir.

Fingir que está tudo bem

Mas isto não significa que o filme não tenha aberto um aceso debate na Índia. Anu Agha, empresária e membro da câmara alta do Parlamento, defende que “banir o documentário não é a resposta”. “O que o violador diz é o que muitos homens pensam na Índia. Não vamos fingir que está tudo bem”, disse, citada pela BBC. “Temos de confrontar o facto que os homens na Índia não respeitam as mulheres.”

“Nós temos a melhor cultura. Na nossa cultura, não há lugar para as mulheres”, diz um dos entrevistados no documentário, ML Sharma, advogado que defendeu os condenados pela violação e assassínio de Jyoti. Outro advogado, AP Singh, afirma que se uma filha ou uma irmã sua “se envolvessem em actividades antes de casarem”, ele “deitaria gasolina em cima dela e pegava-lhe fogo em frente de toda a família”.

Num debate na televisão indiana, Udwin defendeu que o seu filme “tenta mostrar que a doença não está nos violadores, a doença está na sociedade”. A estreia, prevista para domingo em simultâneo na BBC e em televisões de sete países, da Suíça ao Canadá, será seguida de uma campanha global sobre a violência contra mulheres e a desigualdade de género. Estava previsto que 20 milhões de alunos vissem o filme e participassem em workshops em Maharashtra, o estado que incluiu Bombaim e tem uma população de 110 milhões.

Para controlar as manifestações que se seguiram à violação de Jyoti, o Governo criou uma comissão que entrevistou milhares de pessoas e produziu um relatório de 630 páginas onde se pedia que a lei sobre violência sexual fosse modernizada. Foi aprovada nova legislação, mas sem a maioria das recomendações feitas no relatório.

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