Índia: o maior desconsolo do mundo

No mais populoso país do mundo, lugar de soberbas civilizações antigas e pátria de Gandhi, o fascismo prepara-se para sacrificar as pessoas e a riqueza ambiental de uma vasta porção do planeta no altar do progresso e do capitalismo.

Narendra Modi conquistou o voto de uma parte significativa da população votante da Índia, mas não da maioria: o seu partido, o BJP, não chegou aos 40% dos votos. O sistema eleitoral (vigente em muitos dos países federais, como é o caso da Índia) bastou-lhe, no entanto, para ter a maioria absoluta na câmara baixa do Parlamento.

Mas, maioritário ou não em números absolutos, Modi cavalgou de facto um maremoto político e social. Votaram nele as pessoas ricas, semi-ricas e pobres do Norte e centro da Índia (Modi perdeu em todo o Leste e no Sul), essencialmente hindus, mas também muitos muçulmanos e muitos cristãos. Centenas de milhões de indianos querem o progresso, sonham em ascender à classe média e é por isso que votaram em Modi. No subconsciente de todos está a China, o país que odeiam e simultaneamente invejam, ou os Estados do Golfo, onde trabalham mais de quatro milhões de emigrantes indianos.

Mas não me interessa aqui discutir por que sucedeu isto. Interessa-me antes averiguar das possíveis consequências da vitória de Modi para a Índia, a Ásia e o planeta.

Modi pertence à cúpula dirigente do RSS, que, com outras organizações legais e semilegais, civis e paramilitares, constitui aquilo que venho designando como "fascismo confessional" (a designação "fascista” não incomoda nada os militantes mais ferozes do RSS, antes pelo contrário, embora prefiram “nazi”. Mein Kampf continua hoje a ser um best-seller na Índia).

O fascismo confessional domina, por exemplo, a maioria dos países da península arábica ou caracteriza a Irmandade Muçulmana egípcia e outras organizações congéneres e tem como aspectos principais a violência e o terror organizados postos ao serviço dos ricos e poderosos, e uma ideologia religiosa tão gritante que faz com que observadores ingénuos ou mal-intencionados só ouçam a religião e esqueçam a política. O RSS foi fundado por inspiração no nazismo alemão e a sua ideologia movia o homem que em 1948 matou Gandhi a quem o RSS acusava de ser brando em relação aos muçulmanos (isto, depois dos horrorosos massacres da Divisão entre a Índia e o Paquistão). O RSS, bem como muitas outras organizações que dele emanam, baseia-se numa interpretação historicamente falsificada do hinduísmo das castas altas do Norte da Índia. O inimigo n.º1 são os muçulmanos, 15% da população da Índia, 275 milhões de pessoas.

Narendra Modi é um dirigente do RSS. Está embrenhado nas suas malhas desde o início. Foi com o estímulo do RSS que, em 2002, ficou impassível perante o massacre de milhares de pessoas no estado que governava e ainda governa, o Guzarate, seu estado natal, um crime no qual o envolvimento de Modi está mais do que demonstrado (ao contrário do que clamam os seus amigos nocentes e inocentes), a tal ponto que os Estados Unidos e a União Europeia declararam o homem persona non grata durante uma década (sim, esse homem, a quem Obama vai receber na Casa Branca e que percorrerá também, sem dúvida, todas as passadeiras vermelhas da União Europeia).

Com Modi, temos hoje um fascista e um partido fascista a governarem a mais populosa nação do mundo. É muito difícil manifestar qualquer optimismo perante um cenário destes.

E, no entanto, aqui no Ocidente há muita gente que saltita de felicidade: os representantes e os membros dos think tanks do grande capital. Esperam de Modi aquilo que Modi sem dúvida lhes dará: a porta escancarada para a extracção da imensa riqueza potencial da Índia. E esperam também que, uma vez no poder, se esqueça da agenda dos seus apoiantes mais organizados e militantes, os fascistas, e, civilizadamente, amoleça.

Não creio que o RSS, que mexe os cordelinhos de Modi, lhe permita tal amolecimento (nunca a perdoou a anteriores governantes do BJP, como Advani ou Vajpayee, no final dos anos de 1990). Receio antes que as exigências imediatas dos militantes fascistas possam triunfar sobre o “bom senso” do capitalista indiano e internacional. Algumas dessas exigências, agora manifestadas em altos berros na rua, são potencialmente explosivas não só para a Índia, como para toda a Ásia do Sul: trata-se de construir o templo hindu  dedicado a Rama sobre as ruínas da mesquita de Ayodhya, destruída pelos próprios fascistas em 1990 e que o Congresso manteve como sítio de acesso interdito para não deixar alastrar mais o conflito inter-religioso; trata-se ainda de redefinir as fronteiras da Índia com o Paquistão a norte (nos estados de Jammu e Caxemira) e de adoptar um código civil pan-indiano (na Índia, só Goa, por herança portuguesa, tem um código civil, aliás excelente) que obrigue os cidadãos de todas as religiões a aguentar as leis ditadas pela maioria do Legislativo – quer dizer, os hindus de castas altas do Norte e centro da Índia.

Significa isto guerra civil e guerra com o Paquistão? Depende de como Modi implantar a agenda fascista.

Haverá mais perseguição de muçulmanos, cristãos, pessoas de esquerda, dissidentes de toda a ordem, mais injustiça, prisões arbitrárias, tortura, assassinato em massa? Isso, de certeza absoluta.

A guerra com o Paquistão, ou uma situação de constante atrito militar, acompanhada por uma ainda mais violenta repressão das populações muçulmanas de Jammu e Caxemira, é apenas uma das complicações internacionais que podem resultar da vitória fascista. Outra é, por exemplo, a complexificação do sistema de alianças montado pelos EUA contra o Irão no Sudoeste e Sul da Ásia. A viragem gradual e cuidadosa da política externa e da economia israelitas para a China em desfavor dos EUA (que tem passado relativamente despercebida, apesar da sua importância) será agora complementada por uma aliança ainda mais estreita com a Índia, sobretudo em matéria militar? Um triângulo Pequim-Nova Deli-Telavive não é inimaginável.

Do ponto de vista económico e social, os “negócios” conhecem bem os vários tipos de capitalismo existentes por esse mundo fora. Gostam em particular de economias “abertas”, quer dizer, prontificadas para a pilhagem, e dirigidas por Estados que a favoreçam.

Mas não tenho a certeza de que seja este tipo de capitalismo que os fascistas indianos lhes vão oferecer. Talvez seja, antes, o "capitalismo asiático". Designo com esta expressão o tipo de sociedade que vigora hoje de Moscovo a Pequim e de Riad a Singapura, ou seja, sociedades, diferentes entre si, que são caracterizadas por um Estado autoritário, quando não ditatorial, que protege o crescimento económico capitalista, reservando muitos dos frutos desse crescimento para os seus próprios capitalistas (familiares no sentido próprio ou figurado), dando às multinacionais algumas fatias do bolo, e reprimindo com a maior brutalidade qualquer dissidência.

Muita gente confia no sistema legal indiano (de facto, mais justo e democrático do que, por exemplo, o nosso). Pensam que as forças múltiplas da chamada "sociedade civil", a variedade das sociedades indianas e a firmeza do seu poder judicial serão bastantes para travar os fascistas.

Apenas dois exemplos da provável leviandade de tais esperanças: o caso da mineração em Goa e o caso dos tribais do baixo Nordeste e do centro da Índia.

A vigorosa batalha legal levada a cabo por várias organizações nos estados indianos que, como Goa, assentam economicamente na exportação do minério de ferro foi exemplar do ponto de vista que no Ocidente se gosta de designar como democrático, embora os “negócios” não apreciem as suas consequências. Tendo em consideração que a actividade mineira é conduzida muitas vezes ilegalmente, criando à sua volta a mais descarada corrupção e destruindo áreas enormes de floresta ou montanha, as várias instâncias do poder judicial indiano, chegando ao Supremo Tribunal, interditaram no final de 2012 a continuação da mineração. Em Goa, estão vitalmente interessadas no negócio todas as mais poderosas famílias goesas, e também, evidentemente, os milhares de trabalhadores que empregam directa e indirectamente. Mas o Supremo Tribunal não vacilou durante dois anos. Recentemente, porém, substituiu a interdição total por um limite máximo de minério a extrair. Os “negócios” continuaram a choramingar (lembram-se do nosso Constitucional e das nossas troikas? É o mesmo). Agora, depois das eleições, estão naturalmente felicíssimos (eles e os respectivos trabalhadores). Esperam de Modi a rédea solta para escavacarem de vez a paisagem, para rasgarem a montanha com vales de terra cor de sangue.

Outro caso, muito mais grave do ponto de vista tanto político como social e ambiental, é o das florestas existentes num vasto território que vai do Nordeste até ao centro da Índia. Essa floresta serve as necessidades quotidianas das tribos e outras populações que enfrentam há muitos anos a ferocidade de quem quer aceder aos recursos da floresta e do subsolo, e do Estado indiano, que ajuda os “investidores” através da guerra, apoiado por instrutores militares israelitas e outros. Como única ajuda, as populações contam com as suas milícias e a guerrilha comunista. O Estado só manda nas cidades, nas bases militares, nas aldeias de “refugiados” formadas à força. Este conflito, que o Ocidente tem feito o favor de ignorar, vai naturalmente agravar-se agora. O extermínio dos comunistas e dos tribais está sublinhado na agenda dos fascistas.

A Índia vai “crescer”, vai “desenvolver-se”, pois claro. Podemos e devemos esperar que as ilhas de obscena riqueza existentes aqui e ali se expandam, que nasçam outras, que a classe média invada subúrbios e crie cidades novas, que floresçam ainda mais shoppings e arranha-céus, que haja por toda a parte ainda mais fábricas e motores a funcionar incondicionalmente, que a floresta seja queimada ou cortada, a montanha escalavrada, os rios poluídos ou bloqueados por barragens.

E devemos esperar também que a maioria dos que agora são muito pobres (centenas de milhões) continuem pobres – ou mais pobres ainda, se possível. E que os miseráveis sejam tratados com a mais terminal das durezas.

Por fim, devemos esperar que os intelectuais e artistas, que o fascismo vem perseguindo implacavelmente, e a classe média mais esclarecida das grandes cidades indianas tenham uma vida crescentemente marcada pela angústia.

No mais populoso país do mundo, lugar de soberbas civilizações antigas e pátria de Gandhi, o fascismo prepara-se para sacrificar as pessoas e a riqueza ambiental de uma vasta porção do planeta no altar do progresso e do capitalismo. Depois da chuva de flores e dos cantos de vitória, devemos agora esperar o fumo do progresso e dos incêndios provocados pela violência. Devemos esperar o pleno século XXI asiático, o horror com arranha-céus e polícia por todo o lado.

Penso nos amigos que tenho na Índia e nos seus companheiros. Estão praticamente sós perante o inimigo – e assim o têm estado quase sempre, embora em condições menos dramáticas. Que a esquerda, os ecologistas e as pessoas de bem de todo o mundo os ajudem, se o souberem fazer.

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