Indefinição na Irlanda abre lugar a aliança entre rivais de guerra

Eleições inconclusivas deixam Irlanda num cenário semelhante ao de Portugal e Espanha. O espectro da guerra civil paira no ar no momento de se decidirem coligações.

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O complexo sistema de voto preferencial faz com que a contagem final seja mais demorada. Darren Staples/Reuters

Demorará vários dias até que o complexo sistema eleitoral irlandês termine a contagem dos votos das eleições de sexta-feira, mas as sondagens à boca das urnas parecem confirmar aquilo que já se esperava há semanas: o eleitorado penalizou duramente a coligação que aplicou a receita de austeridade recomendada pelos credores e dispersou o voto ao ponto de não haver maiorias ou coligações fáceis no Parlamento. A Irlanda segue os exemplos de Portugal e Espanha e enfrenta agora o seu próprio momento de indefinição política. Com a agravante de as duas grandes forças políticas viverem ainda marcadas pela rivalidade na guerra civil irlandesa de há quase cem anos.

As duas grandes sondagens de sexta-feira sugerem que a coligação de Governo entre Fine Gael e Trabalhistas sairá ainda mais abaixo da maioria parlamentar do que antes se antecipava. A conduzida pelo Irish Times coloca o Fine Gael nos 26%, exactamente dez pontos abaixo dos 36% conquistados em 2011 e quase ao alcance do Fianna Fáil, seu rival histórico e partido que durante mais tempo governou a Irlanda independente, que recupera acima das expectativas, para os 22,9%. A coligação que abandona o Governo torna-se impossível com o afundamento dos Trabalhistas, dos quase 20% para os 7,8%.

O resto do voto dispersou-se por uma vasta rede de pequenos partidos candidatos independentes e Sinn Féin, o antigo braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA), que somou cinco pontos à sua última votação e espera receber cerca de 15%. As previsões eleitorais na Irlanda são dificultadas pelo seu sistema de voto preferencial. Os boletins são preenchidos por ordem de preferência: no caso de nenhum candidato atingir o limiar da eleição, o último classificado é eliminado e passam-se a contar as segundas preferências dos seus eleitores. Esta regra favorece a entrada de partidos mais pequenos no Parlamento, mas nenhuma das forças recém-chegadas parece em condições de facilitar uma maioria — para além do Sinn Féin, que recusa qualquer coligação não liderada por ele próprio, todos os partidos estão abaixo dos 5%.

Apesar de uma parte importante do voto irlandês se ter dispersado por pequenos partidos e independentes, o único cenário capaz de evitar novas eleições e formar uma coligação estável parece ser o de uma aliança entre os dois maiores partidos, como foi sugerido por observadores e responsáveis políticos durante este sábado. Um cenário até agora impensável. Os fundadores do Fianna Fáil e Fine Gael combateram em lados opostos da guerra civil, que culminou em 1921 na secessão da Irlanda com o Reino Unido. As suas políticas de centro-direita são idênticas, mas os fantasmas do confronto pela independência acabaram por dar lugar a dois partidos que, como é habitual ouvir dos seus apoiantes, simplesmente não confiam um no outro.

“Creio que demorará algum tempo a resolver isto e isso não acontecerá amanhã”, disse o líder do Fianna Fáil, Micheál Martin, já depois de figuras em ambos os partidos terem sugerido ou recusado negociações para uma grande aliança. Martin, todavia, sublinhou que os pequenos partidos parecem não ter conseguido apoio suficiente para permitirem uma aliança estável de Governo e não afastou a ideia de negociações com os velhos rivais, apesar de estar “consciente de que as pessoas votaram contra o Fine Gael e os Trabalhistas no Governo”. “Teremos de ser práticos. O que quer que venha a sair [de negociações] terá de ser coerente.”

Colocam-se outros entraves a uma grande coligação para além das inimizades históricas — reavivadas, em todo o caso, pela aproximação do centenário do Levantamento da Primavera de 1916, que espoletou a luta pela independência na Irlanda. Depois de ter recuperado mais do que seria de esperar do tombo dado em 2011, quando o eleitorado o responsabilizou pela crise bancária e pedido de resgate financeiro do seu Governo, o Fianna Fáil quer evitar que o Sinn Féin se torne a maior força de oposição no Parlamento: “O Sinn Fein ficaria muito feliz por se tornar na maior força da oposição no Parlamento, uma perspectiva que fará os dois grandes partidos pararem para pensar”, escreveu no Twitter o correspondente da BBC na Irlanda do Norte, Mark Devenport.

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