Imaginemos um cidadão português…

As injustiças sociais abriram o campo à xenofobia e ao nacionalismo. Politicamente, as democracias europeias estão a sufocar.

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1. Imaginemos um cidadão português da classe média, que não teve oportunidade de ler Hayek (O Caminho da Servidão é digno de ser lido, independentemente do ponto de vista de cada um) ou Milton Friedman e os seus Chicago boys, que não se lembra da revolução conservadora de Reagan e Thatcher ou da proclamação de Deng sobre a glória de enriquecer, que desconhece Keynes e os neokeynesianos e que se confronta com duas notícias que lhe chegaram aos ouvidos nos últimos quinze dias. A primeira, na sequência do escândalo dos Panama Papers (que vê todos os dias ser “branqueado” nas televisões com o argumento de que é perfeitamente legal em muitos casos), está em perfeitas condições intelectuais para perceber: nos últimos cinco anos saíram de Portugal para vários “paraísos fiscais” (o nome basta para se perceber a coisa) 10 mil milhões de euros. Que é muito dinheiro, é fácil de entender sem qualquer fundamentação teórica. Que lhe parece bastante imoral, também. Quanto mais não seja porque anda a “apertar” o mês graças à carga fiscal que lhe caiu em cima, cobrada sem apelo nem agravo, obrigando-o a ter de ouvir uma longa pregação moral sobre o seu dever de viver modestamente. No mínimo fixa perplexo. O problema não é só dele, claro está. Sob condições diferentes, a maioria dos cidadãos europeus, mesmo dos países mais ricos, viu nestes últimos anos de crise o “aperto” dos seus rendimentos depois de vários anos de estagnação dos salários a bem da competitividade europeia. Em quase todos, mesmo no bom tempo, as desigualdades aumentaram e o Estados social diminuiu. Nesses países e no nosso a palavra que lhes vendem para explicar tudo isto é “globalização”. E é verdade.

A segunda notícia já vem de trás, alastra como uma mancha de óleo e é justificada pela mesma palavra. Primeiro, descobriu que a poderosa VW, o exemplo acabado da extraordinária performance da indústria alemã, andava a enganar toda a gente com os testes de emissões de carbono. A infracção, chamemos-lhe assim, estava a ser copiada por outras grandes construtoras e foi descoberta na América que é muito liberal mas que tem a mão muito mais pesada quando a lei não é cumprida. As últimas notícias vêm do Japão, onde a Mitsubishi reconheceu na semana passada que andava há 25 a enganar os clientes desta vez sobre o consumo de combustível. Pensará ele: mas se toda a gente anda a tentar contornar as leis, em que é que devo acreditar? E depois ainda tem de ouvir dizer aos responsáveis políticos (ou a uma parte deles) que vai ter de continuar a fazer sacríficos a bem do crescimento económico futuro e pagar os impostos que lhes puserem à frente, que já nem sequer são para bem do Estado social. Descobre que, afinal, há dois países. Um que é o dele e outro que é o das grandes e médias empresas e das grandes ou médias riquezas que têm à sua disposição um manancial de soluções para não pagarem tantos impostos, tudo justificado com a necessidade de competir no mercado global. É legal? Pois é. Mas é absolutamente imoral e as democracias vivem de um sentimento de justiça que assenta no respeito da lei mas também em padrões morais comuns.

2. A era da globalização nasceu com o fim da Guerra Fria e com a inclusão da China, da Rússia e de outros países nos mercados internacionais; com a revolução das novas tecnologias; e, finalmente, com a ideia segundo a qual a liberalização dos mercados faria o seu papel de ajustamento inteligente dos recursos internacionais. Ainda nos lembramos das manifestações violentas que, no final do século passado, faziam das cimeiras do G7, da OMC ou da União Europeia uma verdadeira batalha campal. Mas, nessa altura e apesar dos estragos, apenas representavam movimentos radicais e marginais contra o capitalismo consumista ou furiosamente ambientalistas. Desapareceram até à crise financeira. Mesmo que pareça aborrecido, convém olhar um pouco para trás para perceber onde chegámos. Quando se começou a falar de globalização, muita gente, sobretudo à esquerda, preferia chamar-lhe “americanização” porque beneficiaria em primeiro lugar a grande economia americana e o seu modelo. Rapidamente, no entanto, se descobriu que os primeiros beneficiários eram as economias emergentes que, pela primeira vez, enriqueciam o suficiente para tirar da miséria milhões e milhões de pessoas. A China foi o caso mais visível, mas não foi o único. Nas democracias ricas, pelo contrário, a globalização começou por atingir quem trabalhava na indústria, com o fenómeno da deslocalização, e quem tinha poucas qualificações e que, graças à competição internacional, se via remetido para empregos de baixos salários (os chamados working poors). As desigualdades aumentaram. Na Suécia como no Reino Unido. O crédito fácil disfarçou esta realidade até à crise financeira e ao fim do dinheiro barato com que as classes médias mantinham os seus elevados padrões de vida. O “pensamento único” continuou a dominar, convicto de que a inteligência dos mercados bastava para afectar os recursos de uma maneira eficaz, desde que a política se afastasse do caminho. A resposta do centro-esquerda começou com os Novos Democratas de Clinton, tentando adaptar a justiça social à liberalização dos mercados e a Europa seguiu-lhe o exemplo, com a terceira-via de Blair e a sua expansão para o continente, de Lisboa a Berlim. A receita parecia boa: qualificar as pessoas e apostar nas vantagens científicas e tecnológicas das economias mais ricas. Os resultados não foram tão bons como o esperado, sobretudo no combate às desigualdades. O grande instrumento da social-democracia europeia para uma melhor redistribuição da riqueza tinham sido os impostos. A globalização criara uma dinâmica que obrigava a descê-los para a economia se manter competitiva.

3. A crise financeira veio demonstrar que os mercados não eram tão inteligentes como se pensava e que a política teria de regressar para tentar impor-lhes regras que evitassem os seus efeitos sociais mais perversos. Mas a grande mudança foi política. Hoje, na Europa e nos Estados Unidos, a revolta das classes médias contra a falta de oportunidades e o aumento das desigualdades não se traduz em manifestações violentas mas em escolhas eleitorais. Parte das classes médias que se vêm como perdedoras da globalização votam nos partidos de extrema-direita e populistas ou em novas versões da esquerda radical e no regresso ao passado de alguns partidos sociais-democratas, cansados da terceira-via (falo de Corbyn e não de Costa, só para esclarecer). A própria Europa, prometida como protectora dos efeitos nefastos da globalização, falhou completamente a sua missão logo à primeira crise séria que teve de enfrentar. As injustiças sociais abriram o campo à xenofobia e ao nacionalismo, fazendo dos refugiados de hoje e dos imigrantes de ontem e de amanhã a gasolina que está a inflamar os extremismos, substituindo uma alternativa que a social-democracia ainda não conseguiu oferecer. Politicamente, as democracias europeias estão a sufocar.

É este o nosso dilema. O dilema do cidadão português que assiste estupefacto ao que se passa à sua volta, que não é contra os mercados nem contra a abertura ao mundo, que não embirra com os ricos mesmo que tenha alguma inveja, mas que assiste, fatalista ou revoltado, ao que se passa à sua volta. E que começa a perceber uma coisa: a conversa que lhe deram nos últimos anos afinal tem muito que se lhe diga.

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