Hoje a Grécia, amanhã a Espanha e depois a Itália?

O Syriza interpreta a crise como uma luta de libertação nacional contra o jugo estrangeiro.

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Na noite da vitória do Syriza escreveu Paolo Flores d’Arcais, filósofo e radical italiano: “Hoje na Grécia, amanhã na Espanha, depois de amanhã na Itália.” Alexis Tsipras, líder do Syriza, prometeu refundar a Europa. “O 25 de Janeiro é o começo, a vitória do Syriza será seguida pela do Podemos em Espanha e, no próximo ano, pela do Sinn Féin na Irlanda.”

Pablo Iglesias, líder do Podemos, proclamou: “2015 será o ano da mudança na Espanha e na Europa. Vamos começar pela Grécia.” Anuncia-se o fim da “era da austeridade” e um novo efeito dominó, inverso daquele que a Grécia abriu na zona euro em 2010. Os mais ousados sonham com uma nova “Primavera dos Povos”, como a de 1848.

Três factos perturbam a festa. Primeiro, o Syriza escolheu para aliado um partido da direita radical — Gregos Independentes (Anel). Foi um balde de água fria para Roma e Paris. É uma “aliança contra naturam”, protestou Daniel Cohn-Bendit. Não é um ponto acessório e a ele voltaremos.
A 19 de Abril, há eleições legislativas na Finlândia. Os Verdadeiros Finlandeses, partido populista eurocéptico, contam com Atenas para mobilizar o eleitorado contra Bruxelas e contra o Sul. Seria a primeira de uma série de vitórias eleitorais “anti-Grécia”. O perdão parcial da dívida grega provocaria uma ressaca no Norte da Europa que fortaleceria a extrema-direita e os partidos nacionalistas, anotou o analista britânico Gideon Rachman.

Por fim, o Sul não é homogéneo. Em Portugal, mantém-se a lógica bipartidária. Na França, quem capitaliza eleitoralmente a luta antieuro e antiausteridade é a Frente Nacional, de Marine Le Pen — que as sondagens colocaram esta semana na casa dos 30%. Marine apoia o Syriza. Ou melhor: utiliza o Syriza para reabrir o “julgamento” da União Europeia. Também na Itália não é a esquerda radical que capitaliza a vitória do Syriza: são os adeptos de Beppe Grillo e a Liga Norte, convertida hoje a Le Pen. Tsipras e Iglesias esqueceram-se de juntar Marine à sua lista de desejos.

Os novos radicais
O Syriza e o Podemos são um fenómeno político novo, uma esquerda radical que não deve ser confundida com as antigas extremas-esquerdas de que provêm. É Iglesias quem melhor o teoriza. O velho esquerdismo visava manter a pureza doutrinal e os seus mitos ideológicos, permanecendo uma força marginal. Iglesias explica que ao Podemos não interessa ter 10% ou 15% dos votos — aspiração do Bloco de Esquerda ou das extremas-esquerdas europeias. Quer seduzir o eleitorado do centro e mesmo da direita. Quer o poder. Não fala em luta de classes — relíquia do século XX —, mas no confronto entre os de “cima” e os de “baixo”, entre a “gente” e a “casta”.

A sua aprendizagem na Venezuela ou na Bolívia não visa assimilar a Europa do Sul à situação da América Latina. O seu objectivo é encontrar novos mecanismos da acção política. A antiga esquerda radical sonhava “mudar o mundo sem tomar o poder”. Podemos quer o poder. Por isso estudaram as experiências de “conquista da hegemonia” pelos populismos bolivarianos. “Ganhar eleições não é ganhar o poder”, escreve Iglesias. Por enquanto, a meta são as eleições. O resto, e o depois, é deliberadamente vago.

O seu “primeiro mandamento” é deixar de falar para a esquerda e falar para a “gente”. O segundo é estar em sintonia com o “estado de espírito” (não com as ideologias) dos espanhóis. O Podemos quer dizer “aquilo que as pessoas pensam”. Os grandes partidos só agora começam a perceber um fenómeno que menosprezaram (Ponto de Vista de 30/11/14).

O Podemos reconhece que o terreno lhe foi aberto não só pela crise económica — que popularizou a hostilidade a Bruxelas e Berlim —, mas sobretudo pela degradação do sistema bipartidário, que se propõe destruir. Tal como o Syriza, rompeu com a anterior estratégia de aliança com a esquerda social-democrata — o objectivo é “pasokizar” o PSOE.

O Syriza começou por ser uma coligação de várias forças da extrema-esquerda clássica que, agora, se vê forçada a funcionar como partido. Tem um estilo mais clássico que o Podemos. Mas começou recentemente a usar uma retórica mais próxima de Iglesias, falando para “toda a sociedade”, para “a nação”, ultrapassando a dicotomia esquerda-direita.

O seu sucesso não decorre apenas do “desespero social”, mas do descrédito do sistema bipartidário e da ruína das “dinastias gregas”. Depois, soube condensar o descontentamento social num sentimento de “humilhação nacional”. Faz uma leitura da crise com raízes na História. “A esquerda radical interpretou a crise dos últimos anos como uma luta de libertação nacional contra o jugo estrangeiro”, anota o economista Manos Matsaganis. “Prometeu um regresso fácil e indolor aos bons velhos tempos de antes do resgate. (...) O partido é alérgico às reformas, combatendo asperamente as mais inócuas.” A mola unificadora é o nacionalismo. Não é surpresa que se tenha aliado ao Anel, “uma direita reaccionária e xenófoba” com laivos de anti-semitismo. “A Europa é governada por alemães neonazis” — é a tese de Panos Kammenos, líder do Anel. Tudo os separa ideologicamente menos a questão principal: a austeridade e a Europa.

Não será a primeira vez, nem a última, que os extremos se aliam. Não é de excluir, na actual conjuntura, inesperadas recomposições políticas que não passam pela clivagem esquerda-direita. Lembremos o referendo francês sobre a Constituição europeia, em 2005. Esquerdistas partidários de “outra Europa”, soberanistas e eurocépticos, de esquerda e de direita, e a extrema-direita de Le Pen uniram-se para derrotar o tratado.

“Credores e devedores”
O Governo grego está numa posição de fraqueza negocial no plano económico: a chantagem sobre o fim do euro deixou de funcionar. Mas tem uma posição política forte. Joga numa vaga de simpatia, na contestação da austeridade noutros países do Sul e no aumento da pressão sobre Berlim. Estabeleceu uma base negocial maximalista para dramatizar a negociação, tentando forçar uma mediação por parte de países como a Itália ou a França.

Diagnostica o alemão Joschka Fischer: “Dado o impacto do resultado das eleições gregas na Espanha, na Itália e na França, onde os sentimentos antiausteridade são igualmente altos, subirá significativamente a pressão sobre o Eurogrupo — tanto à direita como à esquerda. (...) A eleição grega já produziu uma inequívoca derrota de Merkel e da estratégia baseada na austeridade para defender o euro.”

“O elo fraco da teoria europeia é político”, escreveu há semanas Gideon Rachman. “É, especificamente, o risco de os eleitores se poderem revoltar contra a austeridade e darem os seus votos a partidos ‘anti-sistema’ que rejeitam o consenso europeu para manter a moeda única.” É nisto que Atenas aposta, ignorando o efeito boomerang que vai criar.

Que significa politicamente? Crescerão as reacções “soberanistas antieuropeias” a norte e a sul? Que margem de manobra terá Merkel na Alemanha para retomar a iniciativa? Como vão Paris e Berlim responder à divisão norte-sul que se alarga e mudará a UE? A Europa está a radicalizar-se entre dois blocos: credores e devedores.

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