Há uma investigação aos destroços do voo MH17, mas por enquanto só no papel

Rebeldes separatistas controlam a área e acompanham os especialistas da OSCE para todos os lados. Habitantes da região levam destroços e ninguém sabe onde estão as caixas negras.

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DOMINIQUE FAGET/AFP

Já todos vimos as imagens em notícias na televisão, em filmes ou em documentários. Após a queda de um avião, toda a área é isolada e os especialistas em desastres aéreos analisam os destroços ao pormenor, como peças de um gigantesco puzzle que vai sendo completado até se transformar numa reconstituição daquilo que realmente aconteceu.

No caso do voo MH17 da Malaysia Airlines, que se despenhou na Ucrânia, aparentemente abatido por um míssil, o cenário é diferente – enquanto especialistas da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), equipados com coletes à prova de bala, são escoltados por dezenas de separatistas pró-russos armados, mulheres equipadas com chinelos, roupa de dormir e vestidos com alegres arranjos florais são vistas a passear livremente por entre o que restou do Boeing 777, e dos corpos de algumas das 298 pessoas que morreram no desastre.

Com ou sem investigação independente internacional, o ministro dos Transportes da Malásia já tem uma certeza: "A integridade da área foi comprometida, e há indicações de que não foram preservados indícios fundamentais. As interferências no local do desastre põem em risco a investigação", afirmou Liow Tiong Lai, em conferência de imprensa.

O ministro malaio evitou apontar o dedo aos rebeldes separatistas (que lutam contra as forças do Governo de Kiev pela independência das províncias de Donetsk e Lugansk e que controlam a região onde o voo MH17 se despenhou, perto da fronteira com a Rússia), mas as entrelinhas das declarações de muitos líderes internacionais são por estes dias tão claras que ninguém corre o risco de errar na interpretação: o Presidente dos EUA, Barack Obama, disse na sexta-feira que o avião foi abatido por um míssil terra-ar, lançado de uma área controlada por "separatistas apoiados pela Rússia". O resto, o 2+2=4, foi traduzido por Barack Obama numa frase: "Não sabemos ainda ao certo o que aconteceu, mas estamos a começar a tirar algumas conclusões dada a natureza do disparo que foi feito."

Depois de os líderes rebeldes separatistas terem dado a entender que iriam permitir um acesso livre à área por onde estão espalhados os destroços e os corpos das vítimas, houve um recuo a partir do momento em que os especialistas começaram a chegar ao terreno.

"Temos de trabalhar com rapidez para ver o que se passa em relação à segurança na área, ao estado dos corpos, aos destroços, e também às caixas negras", disse ao The Washington Post um dos funcionários da OSCE, não identificado. Mas o mesmo jornal sublinhou que o acesso a toda a área do desastre está a ser limitado por homens armados, e que os especialistas enviados pela organização europeia não conseguiram falar com ninguém sobre as caixas negras do aparelho. Para piorar o cenário, vários habitantes da região foram vistos a retirar pedaços que sobraram do Boeing 777.

Apesar disso, o líder da equipa da OSCE, Alexander Hug, disse à agência de notícias AFP que foi possível falar com "responsáveis, habitantes e pessoas que estão a retirar os corpos", sem adiantar pormenores.

Em Kiev, as autoridades locais foram mais longe, acusando "os terroristas liderados pela Rússia" (a forma como as autoridades de Kiev se referem aos combatentes separatistas pró-russos) de estarem a "obstruir o início da investigação".

Pior do que isso – acusou o Governo ucraniano –, os rebeldes "levaram 38 corpos de vítimas para a morgue de Donetsk, onde 'especialistas' com sotaque russo disseram que iriam fazer autópsias".

"Os grupos terroristas estão também a tentar fazer chegar ao local equipamento de transporte para remover os destroços do avião para a Rússia", acusaram as autoridades de Kiev.

O executivo liderado por Arseni Iatseniuk não tem dúvidas de que "os terroristas, com o apoio da Rússia, estão a tentar destruir as provas deste crime internacional", apelando à "comunidade internacional" que "obrigue a Rússia a retirar os seus terroristas da Ucrânia e a permitir que os especialistas ucranianos e internacionais realizem uma profunda investigação à tragédia".

A Ucrânia acusou desde o primeiro momento os rebeldes separatistas de terem abatido o avião, mas agora diz ter provas de que os homens que activaram o sistema de mísseis são de nacionalidade russa.

"Temos provas conclusivas de que este acto terrorista foi perpetrado com a ajuda da Federação Russa. Temos a certeza de que a equipa que opera este sistema é composta por cidadãos russos", afirmou o responsável pelos serviços secretos do país, Vitali Nada. O mesmo responsável exigiu a Moscovo que entregue a Kiev os nomes dos combatentes em causa, para que possam ser interrogados.

Do outro lado surgem acusações semelhantes em direcção a Kiev. O homem que se apresenta como primeiro-ministro da autoproclamada República Popular de Donetsk, Alexander Borodai, desmentiu a acusação de que os seus homens estão a revolver a área do desastre, e acusou o Governo ucraniano de estar a atrasar a chegada ao local de especialistas. Apesar disso, não põe de parte a hipótese de começar a remover os corpos.

"Um corpo caiu mesmo em cima da cama de uma idosa. Ela pediu-nos por favor para levarmos o corpo dali. Mas não podemos mexer na área", disse Alexander Borodai em conferência de imprensa. "Corpos de pessoas inocentes estão à mercê do calor. Reservamo-nos o direito de iniciar o processo de remoção dos corpos se este atraso continuar. Pedimos à Federação Russa que nos ajude e que envie peritos", disse Borodai.

As grandes questões continuam em aberto, e quanto mais tempo passar, mais tempo demorará a ser encontrada uma resposta: quem disparou o míssil, e por que razão foi disparado contra um avião comercial com 298 passageiros civis a bordo.

Se foi realmente abatido com um míssil do sistema terra-ar Buk – um sofisticado sistema de fabrico russo, usado também pelas forças do Exército ucraniano –, seria expectável que o operador tivesse informação suficiente para distinguir um avião comercial de um avião militar, já que ambos emitem sinais diferentes.

Por isso, escreve o especialista em tecnologia Brian Fung no The Washington Post, só há duas possibilidades, partindo do princípio de que o míssil foi disparado pelos separatistas: "Ou os rebeldes ucranianos tentaram deliberadamente abater um avião comercial, ou apenas receberam treino suficiente para operar os controlos, mas não sabiam distinguir entre os diferentes códigos [emitidos pelos diferentes tipos de aviões]."

Como a decisão de abater um avião com 298 passageiros civis não parece beneficiar os interesses dos separatistas, Brian Fung inclina-se para a segunda hipótese, até porque a presença do sistema de mísseis Buk é uma relativa novidade no terreno – nos dias que antecederam a queda do Boeing da Malaysia Airlines, os combatentes que lutam pela independência das províncias de Donetsk e Lugansk abateram um avião militar An-26, da Força Aérea ucraniana, que pode atingir os 7500 metros de altitude.

Sejam quais forem os desenvolvimentos nos próximos dias, o ministro dos Transportes da Malásia, Liow Tiong Lai, lembrou que não é apenas o desenvolvimento do conflito na Ucrânia que está em jogo. O objectivo é "descobrir quem abateu o voo MH17". "Queremos justiça", resumiu o responsável.

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