Há mais motivos culturais do que económicos por trás do "Brexit"

Se não compreendermos isto não estaremos em condições de perceber a dimensão da crise que afecta presentemente a dimensão europeia

O que têm em comum Roger Scruton, o eminente filósofo conservador inglês, e Francisco Louçã, a mais proeminente figura da extrema-esquerda portuguesa das últimas duas décadas? Nada, apesar de ambos se terem extasiado com o resultado verificado no referendo britânico da semana passada. Scruton viu nesse acontecimento o triunfo de duas rejeições: a rejeição de qualquer forma de partilha de soberania e a rejeição das vagas de imigração que, pela sua dimensão, estariam a ameaçar a identidade da nação britânica. Já Louçã, fiel ao seu dogmatismo marxista, interpretou a decisão do povo britânico como uma manifestação do estertor de um projecto político europeu imbuído de uma marca capitalista. O filósofo da Estética parece estar muito mais próximo da realidade do que o professor de Economia. Na verdade, apesar do comportamento eleitoral manifestado nalgumas regiões do país pela chamada “working class” poder aparentemente sufragar a tese do grande routier do trotskismo, tudo indicia que a xenofobia, o receio de uma radical perda identitária e o concomitante favorecimento da paixão nacionalista constituíram as razões determinantes para a produção do resultado verificado. Há nesta recusa da Europa mais motivos culturais do que económicos, por muito que isso repugne aos defensores das explicações puramente materialistas, sejam estas de natureza marxista ou de âmbito liberal. Se não compreendermos isto não estaremos em condições de perceber a dimensão da crise que afecta presentemente a dimensão europeia. Claro que estas coisas nunca são bacteriologicamente puras, e entre o cultural e o económico subsistem ligações à primeira vista impensáveis. O erro dos fundamentalistas é o de precisamente recusarem esta miscigenação que explica grande parte dos comportamentos individuais e sociais. Mau grado isto, reitero a convicção de que neste caso particular assiste mais razão a Scruton do que a Louçã.

Este referendo teve o mérito de lembrar um dado essencial: a União Europeia é uma organização política democrática onde se pode entrar e sair de acordo com a vontade popular. Não me recordo de nenhuma outra construção histórica com o mesmo grau de integração política provida de tão relevante característica. Da França pós-revolucionária e napoleónica até à União Soviética, passando pela tenebrosa experiência da Alemanha nazi, todas as ambições supranacionais modernas neste nosso velho continente excluíram qualquer ideia de consideração pela livre vontade dos povos. Pela primeira vez, uma grande Nação decide abandonar um projecto de natureza supranacional no escrupuloso respeito pelas regras vigentes. Numa altura em que todo e qualquer bicho-careto, dominado pela cólera dos simplórios, se empenha em atacar o presente projecto europeu, talvez seja adequado lembrar este facto tão elementar. É legítimo exprimir uma posição contrária a qualquer pretensão de constituição de uma comunidade política europeia, como é compreensível a posição daqueles que rejeitando por princípio qualquer modelo de organização política e económica assente no predomínio da liberdade individual contestam uma ambição europeia assente num pressuposto dessa natureza. O que já não é aceitável é a atitude daqueles que, proclamando em tese a adesão ao projecto europeu tal como ele se materializa presentemente, entendem que a melhor forma de garantir a sua defesa é concentrarem-se em salientar as suas insuficiências.

Os próximos tempos não serão fáceis para todos quantos continuam a considerar que a União Europeia constitui a melhor forma dos países europeus enfrentarem temas tão complexos como a globalização, a irremediável perda de influência do Ocidente e a afirmação internacional de novos actores nacionais. Hoje, a assumpção de uma opção federalista é imediatamente percebida e etiquetada como expressão de uma insuficiência moral, senão mesmo intelectual. Nisso a direita nacionalista e a esquerda supostamente internacionalista convergem com evidente gáudio. É preciso resistir a esta nova forma de pretensa hegemonia cultural. No caso concreto do nosso país, assistiremos a uma curiosa convergência de posições entre os herdeiros do Independente e os eternos depositários da suposta superioridade moral esquerdista. Não é por mero acaso que uma certa direita nacionalista e vagamente nostálgica dos tempos do Império se compraza com o declínio do ideal europeu. Uns e outros, na fidelidade às suas arcaicas convicções, representam o que de mais conservador e menos interessante existe no nosso país.

A União Europeia, pela sua própria natureza, constitui um alvo fácil do discurso demagógico e desonesto que por aí vai perpassando. A extrema-direita e a extrema-esquerda são nisso absolutamente idênticas. Não hesitam em recorrer a formulações simplistas e a representações primárias. Ontem mesmo, uma eurodeputada espanhola do PSOE lembrava-me as coincidências entre a oratória falangista de José António Primo de Rivera e a impudica retórica de Pablo Iglesias. Não será difícil encontrar os respectivos émulos no nosso cenário político nacional. A única coisa que me preocupa é constatar que tal tipo de discurso ameaça penetrar os grandes partidos do centro-esquerda e do centro-direita. Aí é que tudo se vai decidir. Se o PS e o PSD decaírem da sua função histórica de defesa do projecto europeu - que como tudo que é humano comporta aspectos criticáveis -, então estaremos condenados a soçobrar diante do exército dos extremistas que não valorizam a liberdade nem tão-pouco cultivam especial apreço pela democracia. Aí sim, estaríamos perante uma tragédia que não teria sequer a grandeza de ser grega ou shakespeariana.

 

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