Guerra de palavras no PS francês: naufrágio à vista

Em 2014, a esquerda francesa está em vias de fazer o seu hara-kiri, diz o politólogo Alan Duhamel.

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A esquerda francesa é perita em "guerras de palavras". De grandes palavras. Que é ou deve ser o PS? Socialista, social-democrata, social-liberal? Ou "pragmático, reformista e republicano", como defende Manuel Valls? Na campanha de desgaste que a "esquerda da esquerda" do PS (os frondeurs) lançou contra o governo de François Hollande e Valls, esta semana foi rica em episódios. A França está numa gravíssima crise económica e num braço-de-ferro com Bruxelas. Que importa? A "guerra das palavras" encobre uma luta pelo poder. Já não se trata de vitórias eleitorais, porque o PS parece resignado às derrotas. O que se disputa é o controlo do partido.

Benoît Hamon, até há dois meses ministro da Educação, declarou que "a política do executivo ameaça a República" e conduz a "um imenso desastre democrático". Martine Aubry, antiga ministra (autora da lei da 35 horas) e antiga líder do PS, saiu da sua longa reserva no feudo de Lille e assumiu-se como mentora da oposição de esquerda, exigindo uma "reorientação da política económica" contra "as velhas receitas liberais" e a refundação de "uma nova social-democracia", claramente ancorada na esquerda.

Valls respondeu a Aubry numa entrevista ao L’Obs (Le Nouvel Observateur). "É preciso acabar com a esquerda passadista, aquela que se agarra a um passado esgotado e nostálgico, obcecada pelo superego marxista e a saudade dos Trinta Gloriosos." Mudar o nome do PS? "Por que não? Partido Socialista já não significa nada. O socialismo foi uma ideia maravilhosa e uma estupenda utopia. Mas era uma utopia inventada contra o capitalismo do século XIX." Não é novidade na boca de quem intitulou assim um livro de entrevistas em 2008: Para acabar com o velho socialismo... e ser enfim de esquerda.

O primeiro-secretário, Jean-Christophe Cambadélis, lançou um apelo à compostura. Françoise Fressoz, editorialista do Le Monde, fala numa disputa dos "restos da velha casa socialista" perante um Presidente que perdeu a autoridade sobre as tropas. "Nas suas cabeças, já perderam [as presidenciais de 2017]. É o que torna este jogo mórbido. É o que explica a espiral de morte em que se lançaram."

O que está em jogo
Querem os frondeurs derubar o governo? São uma quarentena de deputados entre 290. Beneficiam de uma alta mediatização. Mas, para fazer cair o executivo, teriam de associar os seus votos aos da direita, o que é arriscado. Também não terão pressa em antecipar eleições, pois temem uma catástrofe eleitoral em que perderiam os seus lugares. "Não têm interesse em o fazer: hoje, o que tentam é assumir o controlo do PS", observa Gérard Grunberg, politólogo e historiador do socialismo francês.

Há um problema de fundo. "O PS sempre funcionou com um discurso de esquerda na oposição e uma política moderada no poder. Hoje, as divergências são muito grandes: a situação não poderá durar muito tempo", prossegue Grunberg. E os militantes? "Os membros do PS estão um pouco perdidos. O verdadeiro problema é que não sabem verdadeiramente se o PS é um partido governamental ou um partido de oposição." (Ver "Ponto de Vista" de 31 de Agosto).

O partido não mudará de nome. O termo "socialista" ainda dá alguma identidade aos militantes. O próprio Valls reconhece que o nome não é o que mais conta. Ou melhor, apenas conta na medida em que sublinha um "património ideológico" datado e que, na sua opinião, bloqueia a mudança programática.

Os frondeurs e Aubry querem que o eixo ou o centro de gravidade do partido se desloque novamente para esquerda, regressando ao discurso tradicional. É o que Valls põe em causa. "Se a esquerda está ameaçada é porque não consegue articular respostas para as questões essenciais: como enfrentar a globalização que cria ganhadores e perdedores? Como reformar o Estado Providência?" E assim por diante. Por isso também quer mudar o centro de gravidade do partido e aponta para um alargamento ao centro — uma "casa comum de todas as forças progressistas". É evidente a sua apetência pelo modelo italiano do Partido Democrático (PD), projecto que há décadas atrás foi defendido em França por Michel Rocard — de que Valls foi discípulo.

O problema de Valls é que é minoritário dentro do PS e nunca organizou uma corrente própria. A sua legitimidade reside no Presidente. Foi a catástrofe do primeiro governo de Hollande que o fez mudar de política e chamar Manuel Valls.

A questão de fundo
A crise socialista tem outras raízes. A esquerda, e não só em França, não soube avaliar o devastador impacto político da globalização e da crise de 2008, o que tende a favorecer uma postura defensiva ou de regressão a modelos ideológicos arcaicos — debilidade de que Marine Le Pen tira proveito.

O problema não é de agora. O socialismo ou a social-democracia entraram em declínio no fim dos anos 1970 quando se começou a romper a aliança entre as novas classes médias urbanas e a classe operária. Esta coligação assentava num crescimento económico acelerado — "Os Trinta Gloriosos" — na promoção social e na criação do Estado-providência. O modelo entrou em crise após o choque petrolífero de 1973. O keynesianismo começou a ceder perante o neoliberalismo.

A classe operária viu-se atacada em termos absolutos e relativos, arrastando o declínio sindical. O Estado-providência começou a ser corroído. O "elevador social" desacelerou-se. A sociedade tende a polarizar-se entre beneficiários e perdedores da globalização. Esta mudança abriu um debate nos partidos de esquerda. Uma das tentativas foi a terceira via de Tony Blair, hoje esgotada. (Ver "Ponto de Vista" de 24.11.13).

A social-democracia europeia ainda não soube dar resposta às mudanças trazidas pela crise, pela globalização, pela integração europeia, pela imigração e pela crescente precariedade do trabalho, escrevem os espanhóis Andrés Ortega e Ángel Pascual-Ramsey. "Os cidadãos pedem aos seus representantes políticos uma resposta à insegurança do mundo actual, mas a social-democracia não está a saber enfrentar essa exigência. As pessoas não têm a percepção desses partidos como agentes da mudança."

Esta é a discussão substantiva. O resto pertence ao reino da pequena política. "Em 2014, a esquerda francesa está em vias de fazer o seu hara-kiri. Abre o ventre como a esquerda alemã nos anos 1930", prevenia em Agosto o politólogo Alain Duhamel. O PS avança para "uma quase decomposição suicidária". Hoje, o diagnóstico será mais severo.

É difícil acreditar numa reviravolta até 2017. "Em lugar de uma legítima competição entre esquerda, centro e direita, é evidente o risco de um brutal confronto da direita contra extrema-direita, com uma direita mais dilacerada do que em 2012 e uma extrema-direita muito mais poderosa."

Recomeçará então, em 2017, nova "refundação" do Partido Socialista, se sobreviver ao massacre eleitoral.

Texto alterado às 11h13: acrescentada a frase "A França está numa gravíssima crise económica e num braço-de-ferro com Bruxelas" no primeiro parágrafo

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