Grécia, Grécia, porque nos abandonaste?

A errância do governo do Syriza foi premiada pelo eleitorado grego.

1. A rapidez vertiginosa dos acontecimentos dos últimos dez dias traz-me à memória as narrações evangélicas da paixão. Lendo e relendo aqueles textos, pergunto-me amiúde como pode ter acontecido tanta e tão relevante coisa em tão curto e acelerado lapso de tempo.

Da intimidade da última ceia em diante — mesmo descontando as diferenças e incongruências dos quatros textos (que, valha a verdade, até lhes emprestam verosimilhança) — algo deve estar mal. Pelo menos, mal contado ou assaz abreviado. Como pode, no simples período de uma noite e de uma madrugada de quinta-feira a que se soma um meio dia de sexta-feira, ter ocorrido a prisão de Jesus, a presença diante do Sumo Sacerdote, o envio para Pilatos, a extradição para Herodes, o açoitamento e escárnio perante os soldados, o percurso penoso para o calvário, a crucificação no Gólgota e e agonia e morte numas escassíssimas horas (que geralmente eram lentas e morosas)? Tudo parece demasiado rápido, demasiado intenso, demasiado precipitado. Esta estranheza em nada belisca o sentido e a beleza da narração, o significado humano e teológico de cada episódio, de cada gesto, de cada resposta, de cada silêncio. A história é ali História — e isso é (para mim) suficiente.

2. Mas não posso deixar de dizer que, olhando para a maratona final das negociações entre a Grécia e o Eurogrupo, a maratona helénica mais parecia um sprint. Enquanto se iam apresentando propostas e à medida que estas iam sendo negociadas e reformuladas com a Comissão e o Eurogrupo, o Primeiro-Ministro Tsipras arranjou tempo para ir a Moscovo fazer mais um número com Vladimir Putin. Conhecendo bem, como conhece, o actual estádio das relações entre a União Europeia e o antigo Império russo (soviético); e sabendo, melhor que ninguém, que os Estados bálticos, a Eslováquia e a Eslovénia — todos antigos países da "cortina de ferro" e membros da moeda única, os três primeiros formalmente anexados pela União Soviética — têm sido os estados mais intransigentes na negociação com a Grécia. E isso não apenas porque são em geral bem mais pobres do que a Grécia, com um PIB per capita inferior; não apenas porque têm uma parte não irrelevante do seu PIB (chega aos 4 a 5%) consignado aos empréstimos à Grécia; mas também porque vêem nesta proximidade à ortodoxia russa uma ameaça e um desafio.

3. Entretanto, as negociações continuavam em Bruxelas. E quando se aproximavam previsivelmente de um acordo para o prolongamento do segundo resgate e para uma solução — decerto ainda temporária e provisória — para a emergência grega, foram subitamente interrompidas pelo Ministro Varoufakis. Interrompidas pelo anúncio inopinado, em Atenas e pela mão do Primeiro-ministro, de um referendo que visava apurar do apoio do povo grego às propostas feitas pelas instituições. Continua sem se perceber, em Bruxelas, se Varoufakis sabia ou não, antecipadamente, da perspectiva do referendo. Mas a verdade é que, aos olhos dos seus interlocutores, a equipa grega pareceu igualmente surpreendida. Como a Grécia abandonou a mesa, o Eurogrupo prosseguiu a reunião, já com 18 delegações, para avaliar o impacto do mais que provável falhanço do acordo. Tudo era bizarro e estranho, porque o referendo tinha de ser organizado no tempo recorde de uma semana, o que punha em causa as garantias da sua democraticidade. Mas também porque o prazo do segundo resgate se esgotava na terça-feira, 30 de Junho, e, por conseguinte, depois disso, já nada mais estaria em cima da mesa. Ou seja, as condições postas pelo Eurogrupo reportavam-se à extensão de um resgate que ia esgotar-se — como, de facto, se esgotou — antes do referendo, deixando este sem um verdadeiro objecto.

4. A trama complicar-se-ia quando o BCE, mantendo embora a ELA e a liquidez que esta supõe, não aumentou essa liquidez e obrigou a banca grega a passar para um regime de controlo de capitais. O que logo mostrou que a situação financeira do país era insustentável e que a sangria de capitais nos últimos meses (meses já de governação do Syriza) foi absolutamente brutal. Essa asfixia bancária é, aliás, mesmo agora, o maior motivo de preocupação, por poder fazer colapsar a economia do país a qualquer momento.

5. Quando tudo parecia encaminhado para o curso do referendo e da sua campanha, o Governo grego continuou em negociações — na própria terça 30 de Junho — para formalizar um pedido de terceiro resgate, ao abrigo das regras do Mecanismo Europeu de Estabilidade. Na quarta-feira, antes da reunião do Eurogrupo, formalizou por carta o pedido, solicitando três ajustamentos à proposta do Eurogrupo que vinha de sábado para a extensão do esgotado segundo resgate (ajustamentos esses, que eram, de facto, "negociáveis"). Nessa altura, com fundamento sério, alegou-se que o governo do Syriza iria cancelar o referendo ou, pelo menos, recomendar o voto "sim" com este novo enquadramento. Mas nessa mesma quarta à tarde, Tsipras veio dizer tudo o que já tinha dito, reafirmando o "não". Ficou, pois, sem se compreender ao que veio este novo pedido de resgate e se era ele ou não que seria afinal o objecto do referendo. A ideia do agora afastado Varoufakis — que parecia capaz de reconstruir o templo de Jerusalém em três dias — de que faria um acordo com a Europa em 48 horas no caso de o "não" ganhar, indicava que seria esse um dos sentidos possíveis daquele intrigante pedido do meio da semana.

6. A errância do governo do Syriza foi premiada pelo eleitorado grego. Que sinceramente, como nos alvores da democracia ateniense, cedo se deixou levar pelas sereias da demagogia. Todos, quase todos, os clássicos gregos — aí incluído Aristóteles, um confesso realista e moderado — desconfiavam da democracia directa justamente por conter em si a bactéria que a podia degradar numa demagogia. É caso para passar da filosofia helénica para a mística cristã e perguntar: Grécia, Grécia, porque nos abandonaste?

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