Grécia: a revolta democrática europeia

A ameaça que paira sobre a Europa não é o Syriza, partido que se enquadra bem no consenso democrático europeu, mas sim o populismo identitário e xenófobo.

A revolta democrática grega pode ser o sobressalto cidadão de que a Europa tanto precisa; mas também pode ser uma etapa de um processo mais amplo, que pode levar não ao fim do euro, mas, muito mais grave, à fragmentação europeia. Se tivéssemos dúvidas de que a desintegração é hoje uma tendência global, bastava olhar para a vizinhança leste e sul da União.

O Eurogrupo adiou a decisão sobre as propostas da Grécia, mas, como se viu, será impossível que a Grécia, sozinha, consiga travar o desastre europeu. Em vez do apoio dos que mais têm a ganhar com as suas propostas, congregou a oposição de Portugal e da Espanha e a tibieza da França.

A lamentável declaração do ministro das Finanças alemão, de que o Syriza “vai ter muita dificuldade em explicar aos seus eleitores o acordo", é uma provocação incompatível com qualquer negociação séria. Melhor fariam os dirigentes europeus se aproveitassem este “adiamento” para reflectirem.

Devem, antes de tudo, reflectir porque têm medo dos cidadãos e do seu voto. Foi esse medo que levou Merkel e Sarkozy, em 2011, a ameaçarem a Grécia de saída do euro se Georges Papandreou levasse avante um referendo sobre a política de austeridade, como foi esse medo que os levou a impor uma solução tecnocrática (Mario Monti) depois da queda de Berlusconi.

A ameaça que paira sobre a Europa não é o Syriza, partido que se enquadra bem no consenso democrático europeu, mas sim o populismo identitário, xenófobo, que cresce e espreita o fracasso das propostas de mudança de política, subscritas por muitos, e não só na esquerda. Veja-se, em Portugal, a proposta de reestruturação da dívida, assinada, entre outros, por João Cravinho, Manuela Ferreira Leite, Miguel Anacoreta Correia ou Luís Braga da Cruz.

O que os gregos exprimem hoje é a opinião maioritária dos europeus — se a UE tivesse mecanismos democráticos para reflectir a opinião da maioria, imporia outra política. Este é o verdadeiro problema europeu o défice democrático da União.

Mesmo assim, até à imposição de medidas de austeridade, foi possível, sem sobressaltos trágicos, avançar na integração europeia sem resolver a sua questão democrática. Hoje, já não parece possível. Os cidadãos apropriaram-se das questões europeias e já não aceitam passivamente as decisões tomadas em seu nome.

Guilherme d’Oliveira Martins tem afirmado que a construção europeia assenta numa dupla legitimidade, dos cidadãos e dos Estados. Esta assenta nos princípios da igualdade e da soberania partilhada, e foi enfraquecida pela forma como foram tratados os países da Europa do Sul, nomeadamente a Grécia e Portugal, colocados sob a tutela da troika.

É a defesa do princípio da igualdade que leva Jean-Claude Juncker a afirmar que Portugal e a Grécia foram humilhados e, agora que preside à Comissão, a opor-se aos que, como Schäuble, defendem desde os anos 1990 um núcleo duro europeu, sem Portugal, a Espanha e a Grécia.

As vanguardas iluminadas dominaram o século XX independentemente da vontade dos cidadãos “alienados”, iriam construir um mundo melhor, já não acreditavam na utopia celestial, o século das luzes tinha passado por aqui, era na terra que a utopia seria construída.

A Europa é uma dessas utopias (outras houve), iluminada pelo belo sonho kantiano de paz perpétua, de solidariedade entre os Estados, concretizado nas terras que tinham sentido o horror do nacionalismo extremo. O apoio que o nazismo e o fascismo encontraram, em alguns países, criou a desconfiança no voto popular. A rejeição pelo Parlamento francês, em 1954, do projecto de União Política Europeia ainda aumentou mais a desconfiança na democracia no seio dos altos funcionários europeístas.

Da política e do jogo democrático passou-se para a construção pelo mercado, que, por saltos de integração, nos levaria aos Estado Unidos da Europa. As décadas de crescimento europeu, impulsionado pelo Plano Marshall, primeiro, e depois pelas políticas europeias de estímulo económico, facilitaram o sucesso do vanguardismo comunitário, agora posto em causa pelo fim dos anos de prosperidade e pelo fracasso da resposta à crise financeira.

Haverá alternativa à desintegração? Para alguns, o caminho é o salto na integração financeira, mas traria um consequente agravamento do défice democrático. Outros pensam que será o salto federal, um novo tratado que desse verdadeiro poder ao Parlamento Europeu, dissolvesse o Conselho e criasse um Senado representativo dos Estados cenário desejável, mas nada provável.

Eu ficaria feliz, por enquanto, com algo mais modesto: sobreviver, tudo fazer para preservar a Comunidade Europeia (designação que prefiro à de União). Ouvir os que dizem que a política de austeridade não resolve os problemas económicos e financeiros da Europa, discutir à escala da União essa alternativa.

É preciso agora reabrir o debate sobre o futuro da Europa, sem tabus, nem mesmo o dos critérios do euro. As eleições em vários países da União, e sobretudo na Espanha, podem facilitar esse debate.

Os dirigentes europeus fogem ao debate das reformas desde o fracasso do Tratado Constitucional, mas os cidadãos contestam claramente essa fuga e é fundamental ter noçãode  que é melhor que a União seja, embora imperfeita, o resultado da vontade da maioria dos europeus do que ser coisa nenhuma, desintegrada pelos egoísmos dos seu dirigentes e os nacionalismos identitários que a corroem.

A revolta democrática que começou na Grécia ainda é a melhor esperança para o futuro dos europeus e da sua União.

Investigador convidado, Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

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