Governo e oposição síria estiveram cara a cara, mas não falaram de paz

Ministro dos Negócios Estrangeiros sírio denunciou opositores como traidores e acusou países árabes de promoverem o terrorismo no país. Negociações entre as duas partes começam sexta-feira em Genebra.

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O chefe da diplomacia síria diz que “ninguém no mundo tem o direito de dar ou retirar legitimidade “ a Assad Jamal Saidi/Reuters

As expectativas eram muito baixas, mas as palavras trocadas no início da conferência internacional sobre a Síria confirmaram os piores prognósticos. Os representantes de Damasco e da oposição levaram a Montreux o desprezo e o ódio acumulado em quase três anos de guerra civil, mostrando que, nas suas agendas, a paz é ainda uma palavra sem significado.

Ban Ki-moon, o secretário-geral da ONU que se viu protagonista de um incidente diplomático quando convidou e depois retirou o convite ao Irão para participar na conferência, lembrou às duas delegações sírias, juntas pela primeira vez na mesma sala desde o início da guerra, o enorme peso que tinham sobre os ombros. “Todos os sírios olham para vocês neste momento”, afirmou, falando da reunião como uma “oportunidade frágil, mas real” de travar o sofrimento de milhões de pessoas. “Vocês têm uma enorme oportunidade e uma responsabilidade para com o povo sírio”, acrescentou, antes de perguntar: “Quantas pessoas vão ainda morrer na Síria, se perdermos esta oportunidade?”.

Mas a atmosfera, que Ban Ki-moon queria construtiva, não tardou a azedar. Indignado com John Kerry — o secretário de Estado norte-americano repetiu que o Presidente “Bashar al-Assad não fará parte de um governo de transição” —, o ministro dos Negócios Estrangeiros sírio lançou-se numa denúncia sem tréguas dos que se opõem ao regime.

“Ninguém no mundo, senhor Kerry, tem o direito de dar ou retirar legitimidade a um Presidente, a um Governo, a uma Constituição, a uma lei na Síria, excepto os sírios”, disse Walid al-Mouallem, apelidando os representantes da oposição ali presentes de serem “traidores”, “agentes a soldo dos inimigos do povo sírio”. Às monarquias árabes acusou-as de “terem as mãos manchadas de sangue sírio” e de exportarem para o país “monstros em forma humana que beberam a desprezível ideologia wahabita”. “Se continuarem a apoiar o terrorismo na Síria ele vai espalhar-se e queimar toda a gente”.

O discurso prolongou-se bem para lá dos dez minutos concedidos a cada uma das 40 delegações convidadas para a reunião, e quando Ban, depois de repetidos avisos para que concluísse o avisou de que lhe iria retirar a palavra, Mouallem reagiu indignado: “Você vive em Nova Iorque, eu vivo na Síria, tenho o direito de apresentar a versão síria neste fórum”.

O líder da Coligação Nacional Síria foi mais contido, mas nem por isso menos ácido. Evocando o relatório divulgado na véspera, em que o regime é acusado de ter executado pelo menos 11 mil detidos, Ahmad Jarba equiparou as acções das forças leais a Assad às atrocidades cometidas pelos nazis. Disse também que só haverá negociações se Damasco subscrever a declaração de Genebra, o roteiro definido em Junho de 2012 e que prevê a constituição de um governo transitório “formado na base do consenso mútuo”. “Genebra II deve ser o prelúdio do afastamento de Assad e do seu círculo”, sublinhou.

Trocas de presos
As verdadeiras negociações só começam sexta-feira, de novo em Genebra. Mas Lakhdar Brahimi, o enviado especial da ONU e da Liga Árabe, disse não ter a certeza de que seja sequer possível reunir as delegações na mesma sala. Para preparar terreno, encontra-se hoje em separado com as duas partes e, “se tudo correr bem”, o frente a frente pode acontecer “sexta-feira à tarde”, com reuniões que devem prolongar-se por uma semana.

Mas se Montreux deixa um legado é acerteza de que mesmo os objectivos mínimos deste processo — a definição de tréguas parciais e a criação de corredores humanitários — serão negociados a ferros.

No final da reunião, Ban Ki-Moon desvalorizou as palavras incendiárias trocadas entre Mouallem e Jabra, lembrando que “foi a primeira vez que estiveram reunidos”. Brahimi e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, disseram também que as duas partes estão preparadas para discutir as questões mais urgentes, incluindo a troca de prisioneiros e a definição de tréguas para permitir o envio de ajuda.

Outros estão menos optimistas. “Foi um começo nada encorajador”, disse à Reuters uma fonte da diplomacia francesa, afirmando “ter ficado com a impressão de que o regime veio com o objectivo de garantir que as negociações fracassem”. Vários comentadores notam também que qualquer trégua ou troca de prisioneiros que saia das negociações terá de merecer o aval de grupos que não estarão representados em Genebra e rejeitam negociar com o regime.

E qualquer tentativa para ir além do alívio imediato de situações mais urgentes parece excluída à partida. Quer porque governo e regime parecem falar línguas diferentes, quer porque os países que apoiam cada um dos lados não se entendem sobre um plano mínimo de acção.

Em Montreux, Lavrov falou de uma “oportunidade histórica” para negociar um fim da guerra, ao mesmo tempo que avisava os adversários para “evitarem qualquer tentativa para predeterminar o desfecho do processo” e que a saída de Assad não pode ser condição para a paz. John Kerry insistiu nessa exigência. “O direito a liderar um país não se consegue pela tortura.” Em Teerão, o Presidente iraniano, Hassan Rohani, foi mais contundente, dizendo que o afastamento do país excluiu da reunião um das “peças-chave”. “As negociações fracassaram ainda antes de começaram.”

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