Genocídio: Para turcos e arménios o campo de batalha é uma palavra

O reconhecimento da tragédia de 1915 como “genocídio” é o elemento que une as comunidades arménias e cimenta a sua identidade. Para os turcos, é ainda um tabu. Mas emerge uma nova geração de historiadores que questionam os mitos nacionais.

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Os turcos temem ver os seus antepassados retratados como “genocidas” e equiparados a Hitler DR

No dia 24 de Abril de 1915, em plena I Guerra Mundial, o Governo otomano, encabeçado por um triunvirato de “jovens turcos” sob a égide de Mehmed Talat Pacha, ordenou a detenção de 250 parlamentares, intelectuais e personalidades cimeiras da comunidade arménia. Em Istambul acabam por ser presas 2345 pessoas, que serão deportadas ou executadas. É a data oficial do início do genocídio arménio.

Massacres de arménios e outras comunidades minoritárias, como os assírios, ocorrem a partir de 1894-96, quando o sultão Abdulhamid II tentava reformar o império e suster a sua desagregação. Em 1915 é diferente. Iniciada a guerra, os arménios são designados como “inimigo interno” e cúmplices da Rússia — os otomanos eram aliados da Alemanha. A decisão de deportação dos cerca de 1,5 milhões de arménios otomanos vai transformar-se numa operação de extermínio de cerca de um milhão de pessoas — os números são controversos.

O que está em causa já não são os factos, reconhecidos pelos historiadores, é a palavra “genocídio” — cujo uso ou negação se tornou uma questão essencialmente política.

Para os arménios, o termo “genocídio” é o elemento que une a diáspora e a República da Arménia, o nó que cimenta a sua identidade comum. Por que é que essa palavra é tabu na Turquia, quando tudo se passou antes da fundação da República, em 1923? Porque há um elo entre o fim do Império Otomano e a República: os “jovens turcos” que tentaram salvar o império e depois vão ser a coluna vertebral do novo Estado. O nacionalismo turco quer manter intacta a imagem mítica das suas origens — “a ideia da imaculada Conceição da República”, para usar a expressão do historiador turco Halil Berktay. Os turcos temem ver os seus antepassados retratados como “genocidas” e equiparados a Hitler. Por isso, o campo de batalha não é o reconhecimento dos massacres mas a palavra “genocídio” — a chamada “G-word”.

Todo o mundo soube
O tabu turco está em erosão. Nos últimos 20 anos emergiu uma nova geração de historiadores que põem em causa os mitos nacionais. A imprensa aborda o tema cada vez com menos complexos. Em 2012, o jornalista Hasan Cemal, neto de Cemal Pacha, um dos membros do triunvirato de 1915, publicou um livro intitulado 1915 — O Genocídio Arménio. No ano passado, Tayyip Erdogan foi o primeiro Presidente turco a reconhecer o “sofrimento” dos arménios e a apresentar condolências. Mas reagiu colericamente à declaração do Papa sobre “o primeiro genocídio do século XX”. Erdogan defende a equivalência do “sofrimento” de turcos e arménios. O Patriarca dos arménios turcos concorda: “Sofrimento partilhado.”

Declarou ao PÚBLICO, em 2010, o historiador turco Fikret Adanir: “Eu uso o termo ‘genocídio’ nas minhas aulas. Mas uso-o num sentido moral, não no sentido legal. Digo que foi cometido um grande crime e compreendo a posição arménia. Mas eu pertenço a um grupo pequeno, porque a maioria ainda não aceita essa definição. E não aceitará se continuar a ser imposta por parlamentos estrangeiros.”

A deportação e o morticínio dos arménios foram amplamente conhecidos e documentados na época, na Europa e nos Estados Unidos, e qualificados como os mais “atrozes crimes” da Grande Guerra. Os jornais fizeram primeiras páginas com a tragédia arménia. Para lá dos testemunhos dos sobreviventes, havia os de missionários protestantes e católicos, de diplomatas e viajantes. A fotografia desempenhou um papel crucial. Os cônsules alemães informaram devidamente Berlim do extermínio em curso. Um deles citou Sukru Kaya, responsável directo pelas deportações: “É preciso exterminar a raça arménia.”

Observam os historiadores franco-arménios Boris Adjemian e Mikhael Nichanian que, na época, os massacres foram sobretudo olhados como fazendo parte das “matanças da guerra” e à luz da rivalidade das potências — os arménios foram exterminados como cúmplices da Rússia e na sequência da barbárie das guerras balcânicas.

A revolução de Toynbee
Os massacres foram portanto abordados como uma atrocidade de guerra e não como um crime de alcance universal. Adjemian e Nichanian apontam uma excepção, o futuro historiador Arnold Toynbee, então funcionário do Foreign Office: “Espanta pela sua capacidade, em avanço sobre o seu tempo, de captar a dimensão nova e inaudita que esta tentativa de extermínio total de uma população pelo seu governo representa na História da Humanidade.” Toynbee sublinha que os massacres não exprimem o espírito retrógrado das populações balcânicas mas a influência ocidental nos Balcãs, ou seja, a emergência dos nacionalismos. O título do seu livro de 1915 é sintomático — Atrocidades Arménias: o assassínio de uma nação.

Em Maio de 1915, uma proclamação conjunta da Entente — Grã-Bretanha, França e Rússia — prometia levar a tribunal os responsáveis otomanos por “crime de lesa-humanidade”. Era a primeira vez que se distinguia entre um crime de Estado contra a sua própria população e os crimes de guerra. Acabado o conflito, o julgamento foi esquecido.

Mustafa Kemal, Atatürk, o fundador da República, condenou os massacres, em que não teve qualquer participação. Vários responsáveis foram julgados, ainda na era otomana. Mas a tese que prevaleceu foi a de um crime de autodefesa perante os desígnios das potências ocidentais e da Rússia: “Para salvar a Pátria, tivemos de correr o risco de sermos considerados assassinos”, proclamou um deputado na primeira Assembleia Nacional da República.

Políticos e militares depressa “se dotaram de uma armadura destinada a ocultar a memória, não suportando nada que pudesse arranhar esta amnésia organizada”, anota o historiador turco Taner Akçam.

A nova memória arménia
Durante quase meio século, os arménios viveram a tragédia dos pais e avós como a “Grande Catástrofe” (Meds Yeghern), uma dor privada, um capítulo trágico da sua história associado à hecatombe da Grande Guerra. A grande ruptura vai verificar-se em 1965, na comemoração do 50.º aniversário. Vai ser construída uma nova memória.

Durante a II Guerra Mundial, o polaco Raphael Lemkin, que trabalhava no Departamento da Guerra em Washington, elaborou uma nova figura jurídica: o crime de genocídio, que será consagrado pelas Nações Unidas em Dezembro de 1948. A nova figura decorre da ascensão do nazismo mas tem como modelo inspirador o caso arménio.

Só nos anos 1960, perante o crescendo da mobilização dos judeus em torno do Holocausto, a diáspora arménia ganha uma nova consciência: 1915 é genocídio e como tal deve nomeado. Uma extrema politização da memória leva inclusive à formação de grupos terroristas arménios nos anos 1970, como o ASALA, que fazem atentados sangrentos contra diplomatas turcos e massacres em aeroportos. Foi um episódio que prejudicou a causa dos arménios.

Observam Adjemian e Nichanian: “Nos anos 1970-80, o genocídio já não é analisado ou interpretado como um acontecimento da I Guerra Mundial, como era o caso 30 ou 40 anos antes, mas como um crime de Estado incomparável e que não pode ser esquecido nem perdoado, como um cúmulo da injustiça e da imoralidade que exige reparação.” Os arménios têm um outro agressivo argumento: “O genocídio arménio é o único que hoje conhece uma activa campanha negacionista conduzida por um Estado soberano, apoiado em importantes recursos financeiros e diplomáticos.”

Há uma vastíssima literatura científica — e não apenas de apologia. Mas sublinha o historiador Thomas de Waal: “O que hoje domina a discussão pública é a palavra ‘genocídio’, que foi cunhada três décadas depois das deportações arménias para designar a destruição não apenas de pessoas mas de um povo inteiro.”

A Turquia está hoje na defensiva. Mas só os turcos podem assumir a sua História e ninguém por eles.

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