Ganhe ou não a eleição, a extrema-direita já fez danos na democracia austríaca

Hofer pode vencer a presidência e o FPÖ vai à frente nas sondagens para as legislativas. O que acontecer neste país de bem-estar e sem problemas sociais relevantes, terá consequências em toda a Europa, avisa o escritor Robert Menasse.

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"Racionalidade em vez de extremo", apela o cartaz de Van der Bellen. "Com Coração e alma pela Áustria", diz o do seu rival Hofer LEONHARD FOEGER/Reuters

O candidato do partido de extrema-direita, Norbert Hofer, disse que se vencesse as eleições as pessoas seriam surpreendidas com as coisas que serão possíveis na sua presidência. O comentário não passou despercebido num país em que o poder do Presidente existe no papel, mas onde todos têm abdicado de o usar.

Na Áustria, o Presidente pode demitir o Governo e dissolver o Parlamento, forçando eleições legislativas. Este será o seu mais importante poder (há outros, como poder vetar ministros ou governar por decretos de emergência num período até quatro semanas) e tem sido referido na campanha para as presidenciais, cuja segunda volta se repete este domingo.

Se Hofer for eleito, e decidir usar essas prerrogativas logo a seguir a ser eleito, a Áustria poderá não só ter um Presidente de extrema-direita, como um chefe de Governo também. O Partido da Liberdade (FPÖ) é neste momento o partido à frente nas sondagens para as legislativas que têm de ser realizadas antes do final de 2018, com mais de 30% das intenções de voto, seguido dos dois clássicos grandes partidos austríacos (os conservadores do ÖVP/Partido do Povo e os sociais-democratas do SPÖ), cada um na casa dos 20%.

O chanceler social-democrata Werner Faymann demitiu-se em Maio, na sequência da derrota do SPÖ na primeira volta das presidenciais, mas ambas as formações na grande coligação de Governo recusaram uma antecipação das eleições. Haveria razões para agora a defender.

Esta votação presidencial é o culminar de vários inéditos: na primeira volta, em Abril, os candidatos dos dois grandes partidos austríacos foram afastados, deixando em confronto na segunda volta o candidato do Partido da Liberdade (FPÖ) Norbert Hofer (45 anos), e o candidato independente apoiado pelos Verdes, Alexander Van der Bellen (72 anos); um representante de um partido que andou quase sempre abaixo dos 10% de votos, e outro que se apresenta como um partido anti-sistema (mas que já participou no Governo em 2000-2005).

Na segunda volta, em Maio, Van der Bellen venceu Hofer por uma pequena margem, mas o derrotado desafiou legalmente o resultado. Apesar das irregularidades serem pequenas e apenas nos votos por correspondência (por exemplo, o início da contagem, em alguns locais, foi antes ou depois do previsto), o Tribunal Constitucional decidiu anular os resultados e repetir as eleições. As sondagens dão agora um empate técnico entre os dois candidatos.

O escritor de esquerda Robert Menasse afirmou que o FPÖ conseguiu “destruir a democracia” com o seu desafio ao resultado, levando as autoridades, por não quererem deixar qualquer sombra de dúvida sobre o processo, a mandar repetir uma eleição por irregularidades que não tiveram relevância para o resultado. Quando muitos se questionam sobre o grau de ameaça à democracia caso o partido "anti-sistema" vença, Menasse diz que o dano já foi feito. “Na verdade, o FPÖ não suportou perder”, declarou o escritor.

No diário liberal Der Standard, o colunista Hans Raucher assegura que “se o FPÖ tomar o poder, a Áustria não será reconhecível”. O ex-Presidente da Áustria Heinz Fischer (social-democrata, a quem sucederá o vencedor), avisava em entrevista ao francês Le Monde que “a democracia não é indestrutível”. Mas Menasse acrescenta que as consequências “não se sentirão só na pequena República da Áustria, mas em toda a Europa”.

O papel dos refugiados

A subida da extrema-direita na Áustria, país de bem-estar e sem problemas sociais relevantes, tem sido ligada à crise dos refugiados. Este foi um factor, não pela sua mera existência, mas pelo modo como o Governo reagiu. O professor de política da Universidade de Princeton (EUA), Jan-Werner Müller, explica com dois exemplos. O chanceler social-democrata Werner Faymann, que chegou a ser o maior aliado da sua homóloga alemã Angela Merkel na ideia de receber refugiados, deu uma reviravolta total e acabou a fechar fronteiras. O resultado foi que perdeu popularidade e demitiu-se. Nas eleições para a câmara de Viena, o autarca, outro social-democrata, Michael Häupl, manteve a sua posição fortemente pró-refugiados e, apesar de ser já pouco popular, e de as sondagens darem a vitória à extrema-direita, venceu as eleições locais de Outubro do ano passado contra todas as expectativas.

A “crise dos refugiados” tem sido no máximo um catalisador, argumenta o especialista em extrema-direita Cas Mudde, lembrando que a subida para primeiro lugar do FPÖ nas sondagens aconteceu em 2014, “muito antes de os refugiados serem vistos como uma ‘crise’ na Europa”.

Mudde fala do “comportamento oportunista e incompetente” dos dois grandes partidos, primeiro na reviravolta do Governo na questão dos refugiados, segundo por não terem apoiado oficialmente o candidato ecologista contra Hofer. 

A extrema-direita, que começou a ganhar expressão quando liderada pelo populista e exuberante Jörg Haider (que morreu em 2008, três anos depois de ter deixado o FPÖ e fundado um novo partido), aproveitou o domínio dos dois partidos para se apresentar como uma alternativa. O facto de os conservadores e sociais-democratas praticamente terem dividido país entre os dois, dominando o Governo em grandes coligações ou usando as grandes maiorias parlamentares para aprovar leis que poderiam ir contra a Constituição, deixando grande parte da definição de políticas públicas a cargo da negociação de parceiros sociais e mantendo o Parlamento como uma câmara de confirmação de propostas legislativas e não da sua elaboração, criou espaço para que surgisse alguém a capitalizar a ideia de ser uma oposição real. Junte-se a isto os mais convenientes dos bodes expiatórios – Bruxelas, estrangeiros – para permitir sucesso.

Sobrevivente do Holocausto entra na campanha

Mas isto não explica como podem ser aceites ideias tão próximas das que vigoraram durante o período nazi, embora o flirt com o anti-semitismo que vigorava no tempo de Haider tenha diminuído – o FPÖ aproximou-se de Israel e tornou-se sobretudo anti-sistema e anti-islão.

Há quem invoque como a Áustria foi um caso especial: a primeira vítima da Alemanha nazi mas também o local em que a população mais abraçou os invasores. A primeira característica foi a mais enfatizada na História do pós-guerra, diz Jan-Werner Müller. Mais, um anterior regime totalitário, do chanceler Engelbert Dollfuss, mandado assassinar por Hitler, deixa como possível uma ideia de totalitarismo respeitável no país, defende Robert Menasse.

Voltando aos anos 1930, uma sobrevivente do Holocausto provocou um debate na campanha. Um vídeo de Gerturde, 89 anos, no YouTube, publicado pela campanha de Van der Bellen, tornou-se viral (contava ontem com mais de 3,3 milhões de visualizações). Nele, a sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz (para onde foi levada junto com a família aos 16 anos; todos morreram excepto ela) declara: “Já vi isto uma vez. E assusta-me”. Em especial, “a falta de respeito pelo outro”, o “apelar ao que mais baixo há nas pessoas, não ao que é decente, mas o que é indecente”, diz. “E não é a primeira vez que algo como isto acontece.”

Termina com um apelo ao “voto responsável” dos jovens: “Para mim é provavelmente a última eleição. Mas os jovens, que têm a vida à frente, têm de decidir”.

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