França: PS perde a “vergonha de governar”

O PS francês quer ser um partido de governo ou um partido de protesto?

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1. A demissão e recomposição do governo socialista francês tem muitas dimensões: desde o debate sobre a austeridade, a real ou a imaginária, ao risco de uma crise de regime. Este texto foca outro ângulo. Qual é a vocação do Partido Socialista francês? Ser um partido de protesto, um partido de governo ou as duas coisas ao mesmo tempo?

A crise que levou ao “acto de autoridade” de François Hollande e Manuel Valls começou (só aparentemente) com a palavra “austeridade”, de que o ex-ministro da Economia, Arnaud Montebourg, fez uma bandeira para criticar a política económica do governo de que fazia parte. Corrigiu o ministro do Trabalho, François Rebsamen: “Este governo não faz uma política de austeridade.” Austeridade, explicou, seria diminuir salários, cortar reformas ou reduzir a duração do subsídio de desemprego. De resto, o número de funcionários continua a crescer e a despesa pública permanece globalmente estável.

Hollande e Valls estão confrontados com a estagnação económica e um alto desemprego. Hollande apostava numa retoma em 2013. Enganou-se e a “falta do crescimento” abriu uma crise política. Muito sumariamente, há duas políticas em disputa: uma linha expansionista e de apoio ao consumo para relançar a economia, solução defendida pela esquerda do PS; ou dar prioridade aos incentivos às empresas, como reduzir os encargos sociais, na mira de aumentar a competitividade, o crescimento e o emprego. A primeira via falhou. Hollande acordou e anunciou em Janeiro o “pacto de responsabilidade”, que marca a viragem. A outra grande questão, que opõe Paris a Bruxelas e Berlim, é a do défice: a França quer mais tempo para cumprir a meta dos 3%.

Montebourg é um nacionalista económico. É eurocéptico, defende a desglobalização, ataca o BCE de Draghi e propõe uma política de confronto com a Alemanha. “O jogo de Montebourg consiste em forjar uma imagem e uma postura que lhe permitam concorrer às primárias para designar o candidato socialista [às presidenciais]”, escreve Jean-Marie Colombani, antigo director do Monde. “Pensa que Hollande já perdeu a eleição de 2017 e quer eliminá-lo da corrida à sua própria sucessão impondo-lhe primárias.”

2. Está em jogo o futuro do Partido Socialista. Françoise Fressoz, editorialista do Monde, faz este diagnóstico: “É uma crise estrutural, uma crise grave que não está apenas ligada ao jogo pessoal de dois ministros, Arnaud Montebourg e Benoît Hamon, que desejavam ao mesmo tempo estar dentro e fora, servir e contestar. É uma crise que demonstra a fraqueza da esquerda, o seu amadorismo, a sua impreparação perante a crise, a sua incapacidade de a ultrapassar colectivamente. Uma esquerda do salve-se quem puder.”

A “esquerda da esquerda” gosta do poder mas quando é necessário tomar medidas impopulares prefere o conforto ideológico da oposição às dificuldades da acção governamental. Assume então a postura de partido de protesto — a “função tribunícia” outrora desempenhada pelos comunistas franceses.

Gérard Grunberg, historiador do socialismo francês, narra as flutuações do PS. “Quando estava na oposição, adoptava um programa ‘verdadeiramente de esquerda’, depois, uma vez no poder, fez uma viragem mais ou menos liberal. Regressado à oposição, adoptou de novo um programa ‘verdadeiramente de esquerda’. E recomeça um novo ciclo. Os socialistas puderam assim, a partir de 1981, constituir um grande partido de governo sem proceder à revisão ideológica que, eventualmente, lhes poderia ter dado uma base política e ideológica partidária para as políticas e viragens realizadas.”

Grunberg publicou em 2005 (com Alain Bergounioux) um livro intitulado L’ambition et le remords. Les socialistes français et le pouvoir (1905-2005). Desde a Frente Popular de 1936 que o PS age no governo como os trabalhistas ou os social-democratas: de forma reformista, fazendo um compromisso com a economia de mercado. Mas nunca renunciou à retórica da ruptura com o capitalismo ou agora da ruptura com o liberalismo. “Partido revolucionário sem revolução, partido operário sem base operária, partido de governo com vergonha de governar, o PS continua a conciliar o fazer e o dizer, como propunha no fim do século XIX o alemão Eduard Bernstein.”

Ao contrário dos comunistas italianos, não aproveitou a ruptura de 1989 para se repensar ideologicamente. Nele coexistem duas faces: uma governação reformista e um património ideológico arcaico. Hollande foi um especialista da “síntese” — o compromisso com todas as correntes ideológicas. Esta crise foi “a certidão de óbito” da “síntese hollandista” (Le Monde).

Para Grunberg, a crise marca o fim “de um grande ciclo histórico do socialismo francês”. Está em causa “a capacidade do Partido Socialista permanecer um grande partido de governo. Os franceses vão pôr-se esta questão.” E já o fazem. O PS acaba de passar por dois massacres eleitorais, nas locais e nas europeias. Foi ultrapassado pela Frente Nacional, de Marine Le Pen. Perdeu 30 mil eleitos municipais. “Foi a fraqueza eleitoral do conjunto da esquerda que reforçou a coerência da ofensiva ideológica de Manuel Valls”, observa o politólogo Fabien Escalona.

“A esquerda pode morrer”, avisou Valls em Junho. Designava o PS. Há o risco de ver Marine Le Pen na segunda volta das presidenciais e é incerto que o adversário seja socialista. “Sentimos que chegámos ao fim de um ciclo histórico no nosso partido. A esquerda nunca foi tão débil na história da V República.”

3. Valls pode falhar mas não tem vergonha de governar. A actual política é uma operação de emergência para evitar o afundamento. Sabe que o problema é muito mais fundo. Sublinha o “esgotamento” do modelo social-democrata. “O pior é que a esquerda mostra-se hoje incapaz de regenerar o Estado-providência, adaptando-o às realidades da nossa época. À falta de afrontar as consequências da globalização e da individualização da sociedade, a esquerda fecha-se numa concepção pessimista do mundo.”

A esquerda não soube avaliar o devastador impacto politico da globalização e da crise de 2008 o que, em muitos casos, favorece a regressão a modelos ideológicos arcaicos.

Deixo a conclusão ao italiano Antonio Polito, editorialista do Corriere della Sera. Comparando os desafios da esquerda dos dois países, aponta “duas lições não escritas” que pesaram no desfecho da crise francesa. “A primeira é que, das ‘duas esquerdas’, aquela que não tem em conta a realidade, que se ilude e ilude os eleitores sobre a possibilidade de regresso à idade de ouro da social-democracia, aumentando o défice e os impostos, está destinada a perder.”

“A segunda lei, confirmada pela punição de Montebourg, é que Paris, seja qual for o governo, jamais chefiará uma frente de oposição à Alemanha. A França não tem nenhum interesse em se tornar no chefe de fila dos fracos. A sua missão política é a de estar no coração da Europa.”

A viragem francesa é uma boa notícia para o reequilíbrio das relações de forças dentro da Europa.

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