França não vai responder ao terrorismo com medidas de excepção

Governo mobiliza 10 mil soldados para a segurança de Paris e outros "pontos sensíveis", e garante protecção dos locais de culto de judeus e muçulmanos. Primeiro-ministro rejeita a adopção de um Patriot Act à francesa, como defende a direita e o lobby dos polícias.

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BERTRAND GUAY/AFP

O Governo francês está a preparar várias iniciativas em resposta ao terror dos últimos dias em Paris, mas segundo garantiu o primeiro-ministro, Manuel Valls, não vai adoptar “medidas de excepção” nem declarar uma “guerra global ao terrorismo” depois dos atentados da semana passada contra o jornal satírico Charlie Hebdo e num supermercado judaico, como fez o Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, no rescaldo dos ataques de 11 de Setembro de 2001.

As medidas que estão a ser equacionadas pelo executivo têm a ver com um reforço imediato da protecção de locais considerados “sensíveis” e de acções em pontos conhecidos de recrutamento de jihadistas, como estabelecimentos escolares ou prisionais. Manuel Valls também falou na preparação de um novo decreto para “aprimorar” o funcionamento dos serviços de recolha de informação ou de vigilância electrónica. Mas por mais tentadora que a ideia possa parecer, não haverá nenhum Patriot Act em França, sublinhou o chefe do executivo, que reuniu no Eliseu com o Presidente François Hollande e todos os dirigentes das forças de defesa e segurança do país.

A discussão de um endurecimento da legislação, com um pacote de medidas draconianas para a redução das liberdades públicas e individuais em nome da segurança nacional foi avançada no fim-de-semana por alguns políticos de direita – que já tinham sugerido a proclamação do estado de emergência, o fecho das fronteiras ou outros “procedimentos excepcionais” semelhantes àqueles adoptados pelos EUA em 2001.

Numa primeira reacção, Manuel Valls disse que “sem dúvida serão necessárias novas medidas para responder ao terrorismo”, mas logo depois corrigiu que “temos de ser impiedosos, mas não precisamos de inventar novas medidas só por causa destes actos” – o Governo lançou novos decretos anti-terrorismo em Novembro de 2014 (que ainda não entraram em vigor mas já foram reputados como insuficientes). A correcção tinha como destinatário o lobby das polícias, assinalava o Le Monde: “para fazer esquecer as falhas do dispositivo, e reclamar mais meios”, este lobby assumiu a sugestão de um Patriot Act à francesa como uma nova causa.

Num artigo desta segunda-feira, aquele diário escrevia que “a ideia de uma guerra contra o terrorismo é muito preocupante” e alertava para os perigos de legislar a quente, imediatamente após acontecimentos traumáticos, quando existe “uma onda de emoção que submerge a racionalidade”. O antigo deputado socialista Robert Badinter, que promoveu a lei que aboliu a pena de morte em 1981, defendeu no Libération que “não é com leis e outras jurisdições excepcionais que se defende a liberdade contra os seus inimigos”.

Com o alerta para o risco de atentado terrorista no nível máximo, o Governo francês mobilizou dez mil homens das Forças Armadas para patrulhar as ruas de Paris e outros “pontos sensíveis” da França – desde os tempos da Segunda Guerra Mundial, a capital nunca esteve tão repleta de tropas na rua. “É a primeira vez que uma mobilização desta amplitude abrange as nossas forças em todo o território”, reconheceu o ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, acrescentando que “as ameaças continuam presentes” depois da onda de atentados da semana passada.

Outros cinco mil agentes foram destacados para garantir a segurança de edifícios ligados à comunidade judaica francesa: 717 escolas e locais de culto, distribuídos por vários pontos país. O primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, que participou na grande marcha republicana de domingo, terminou a visita a Paris com uma deslocação ao supermercado Hyper Cacher, onde quatro reféns foram mortos. As vítimas serão enterradas esta terça-feira em Israel – que abriu oficialmente as portas a todos os judeus franceses que tenham deixado de se sentir seguros em casa.

A comunidade islâmica também fez um apelo ao reforço da vigilância e protecção do Estado. De acordo com o Observatório contra a Islamofobia do Conselho Francês do Culto Muçulmano, depois do atentado terrorista no Charlie Hebdo, na passada quarta-feira, já se verificaram mais de 50 ataques contra mesquitas e indivíduos: insultos, ameaças, vandalismo, fogo posto, explosões, tiros e granadas. Os números foram confirmados pelo ministério do Interior.

“É um número jamais visto de actos hostis contra os muçulmanos em menos de uma semana”, lamentou o presidente do observatório, Abdallah Zekri, à AFP. Em termos de comparação, entre Janeiro e Outubro de 2014, que são os últimos dados oficiais disponíveis, houve 110 ocorrências contra muçulmanos (insultos e acções violentas). “Há que reforçar a vigilância sobre os locais de culto, as páginas de Internet e as redes sociais, por causa dos exercícios do ódio e da vingança a que estamos sujeitos”, defendeu, criticando a falta de segurança da Grande Mesquita de Paris, que é o símbolo do islão em França.

Manuel Valls exprimiu a mesma preocupação pelos “acontecimentos dos últimos dias, e que não são novidade, de vandalização e ataques a tiro contra mesquitas”. O primeiro-ministro sublinhou que “todos os cidadãos do país têm direito à protecção do Estado e das forças da ordem”, e garantiu que o ministério do Interior já tomou medidas para assegurar que também os locais de culto dos muçulmanos serão abrangidos pelos efectivos mobilizados para a operação inédita de segurança militar.

No Parlamento, discute-se a possibilidade da abertura de uma comissão de inquérito sobre os atentados. A proposta foi avançada pelo líder da bancada da UMP, Christian Jacob, com a premissa de reconstituir os acontecimentos mas principalmente a de “retirar as lições do que aconteceu: precisamos de saber quais foram as condições em que estes indivíduos saíram da jihad, da prisão ou da vigilância de que eram alvo para ter os elementos necessários para modificar a legislação”. A ideia foi acolhida pelos deputados socialistas, que reputaram como indispensável a colaboração com o Governo “para estudar as melhores formas para melhorar o dispositivo anti-terrorista de que o país dispõe”, observou Bruno Le Roux em nome da bancada.

O ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, explicou que o Governo quer legislar para conceder maior autoridade aos serviços competentes para a monitorização da Internet em busca de actividades subversivas ou na comunicação entre células terroristas – o executivo anunciou a criação de 500 novos postos nos serviços de informação. Manuel Valls referiu-se à proposta em entrevistas à rádio RCM e à BFM-TV: “Há que melhorar o sistema de escutas administrativas e judiciárias”, disse.

As restantes medidas, sobre as quais deixou apenas pistas, serão explicadas esta terça-feira à Assembleia Nacional, prometeu. Entre elas está uma “generalização do regime de isolamento para os islamistas radicais sob detenção” e ainda acções nas escolas  “para lutar contra o racismo e o anti-semitismo”.

Não foi apenas em França que os acontecimentos da semana passada em Paris deram origem à reflexão política. Em Londres, o primeiro-ministro David Cameron instruiu os dirigentes dos serviços de segurança britânicos a desenhar planos de contingência para a eventualidade da ocorrência de actos semelhantes no Reino Unido (que foi alvo de um ataque coordenado a 7 de Julho de 2005 e assistiu já a acções isoladas como por exemplo o assassínio do soldado Lee Rigby).

Cameron prometeu ainda “reforçar o arsenal jurídico” para lutar contra os extremistas, de forma a impedir a comunicação entre eles ou a permitir o regresso dos cerca de 600 jihadistas britânicos que deixaram o país para combater na Síria e no Iraque. Essa é uma promessa que o líder conservador só conseguirá cumprir se for reeleito para o cargo, dentro de quatro meses: a sua proposta para uma nova lei para a vigilância de comunicações e dados electrónicos foi bloqueada pelos parceiros de coligação liberais-democratas.

Investigações em curso
As autoridades francesas prosseguem com as investigações aos crimes ocorridos em Paris e com as buscas pelos alegados cúmplices dos terroristas – por exemplo, os responsáveis pela produção e publicação dos vídeos que surgiram depois da morte de Amedy Coulibaly no cerco ao supermercado. Algumas das referências feitas nessas gravações envolviam informação que só foi conhecida horas depois de Coulibaly ter sido abatido.

Definitivamente livre, e sem qualquer acusação, está Mourad Hamyd, o jovem de 18 anos que foi procurado como o terceiro suspeito do ataque ao Charlie Hebdo, e que se entregou à polícia nessa mesma noite depois de ler o seu nome nas redes sociais. As autoridades confirmaram que o jovem foi libertado logo na sexta-feira, depois de várias testemunhas terem confirmado que estava nas aulas à hora do tiroteio.

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