Foi de barco que a Europa chegou a Creta e se tornou humana

A mitologia como metáfora de uma política europeia de migrações muito aquém do futuro.

Entre a Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu deve haver, com toda a certeza, uma maioria de pessoas com H grande que olhem para as questões migratórias como o grande desafio à humanidade nesta segunda década do século XXI. Tenho a certeza disso. Chegados aqui após décadas (séculos?) de interferência nas políticas de desenvolvimento dos continentes que rodeiam a Europa, após interferências nos seus modos de governação e uma política de realpolitik (que lida com a menor democracia de alguns dos líderes destes países ao sabor dos interesses de cada momento) haverá ainda uma maioria de humanistas na Europa que pensa menos no “bem” e mais no “comum”. Tenho a certeza disso. Tenho a certeza porque sem estes políticos e estas políticas nos aproximaremos do caos, da guerra e da desumanidade.

A relação da União Europeia com o Mediterrâneo (e através dele com o mundo) está em crise. Na verdade estamos perante uma guerra civil intercontinental. Uma guerra civil de baixa intensidade. Não querendo ver este grande mar como um lago interior que une duas margens mas, ao invés, como um muro que separa dois mundos, a UE cria uma fronteira que separa em vez de unir. A crise de que se fala é afinal de pessoas e de valores. De pessoas porque, é bom nunca esquecer, são pessoas como nós que estão nos barcos que atravessam o Mediterrâneo. De pessoas porque as lideranças europeias não param de nos surpreender com os seus discursos conservadores e retrógrados (vide Órban ou Cameron sobre a proposta de quotas europeias para os refugiados). De valores porque, com raras exceções, as lideranças falam hoje economês essa língua em que valor tem um outro significado. A guerra civil é, como sempre, entre irmãos. É sempre trágica porque nela nos matamos uns aos outros ao tentar não morrer. A guerra civil é trágica porque matamos com medo de morrer. O gatilho é sempre o medo.

A ironia vem de não percebermos que a Europa é, ela própria, o resultado de uma migração. Na mitologia grega, Europa era filha do rei da Fenícia, Agenor, e irmã de Cadmo. Foi raptada por Zeus que se disfarçou de touro para que a sua ciumenta mulher, Hera, não percebesse. Zeus levou Europa para Creta, onde desembarcou na praia de Matala, o que levou Cadmo a procurá-la e, nessa viagem, a fundar a cidade de Tebas. Em Creta, Europa e Zeus tiveram três filhos: Minos, Radamanto e Sarpedão. A ironia está toda aqui, a Europa, os barcos e a Grécia como porta de entrada para todo um futuro. Ao deserdar a Grécia, a Europa condena-se à solidão. Ao quotizar-se para receber alguns, poucos, dos que querem entrar a Europa, rejeita os seus ancestrais. Ao mesmo tempo, o fantasma dos dias passados assombra o futuro dos dias vindouros.

Em sucessivos momentos, a União Europeia tem tido medo da liberdade. Quando desafiada a aceitar a liberdade de circulação interna adiou, protelou, estabeleceu períodos de transição. Foi assim com a adesão de Portugal e de Espanha, depois com a adesão de vários países do leste da Europa. É assim com a Turquia. Mas, quando perdeu o medo da liberdade, a circulação das pessoas não provocou invasões de uns povos pelos outros. Ao contrário, criou uma sensação de liberdade em todos os que descobriram que as fronteiras não existem. Criou o Erasmus e os amores Erasmus e os filhos desses amores europeus ou as lowcost que reinventaram o turismo. A União Europeia não hesitou em apoiar a liberdade de capitais, hesitou (um pouco) na liberdade de produtos e serviços (num proteccionismo bacoco que ainda subsiste) e recusa a liberdade de circulação de pessoas de “países terceiros” para os seus territórios. Percebe-se de onde vem o medo: da invasão como ameaça, da ameaça da invasão. É a política extremista a tornar os políticos cobardes.

Gostava de ter a ilusão de que a liberdade de nos movermos é tão importante como a liberdade de expressão. Afinal estar preso é não poder sair da gaiola (mesmo que dourada). A liberdade de ter opinião aqui ou ali. Sem a liberdade de sair de um país e a liberdade de entrar noutro país talvez sejamos apenas senhores e escravos. Escravos de um espaço que nos condena a existir apenas nele. É preciso não esquecer que a “invenção do passaporte” (como lhe chamou John Torpey) está estreitamente ligada à reificação do Estado Nação e serviu para criar nacionalismos estupidificantes (mas com consequências reais para parafrasear W.I. Thomas).

Num momento em que as migrações são um desafio político, a provocação é o de pensar mais longe, muito mais longe. Não bastam quotas minimalistas e segurança maximalista. A estratégia europeia para as migrações tem que ser a de, num prazo realista, criar condições para a desinvenção do passaporte. Para fazer um trabalho de longo prazo que permita a liberdade de circulação de tod@s. Sei que não é para amanhã mas creio que um dia será. Se foi possível libertar os capitais e depois os produtos e serviços dos estreitos territórios onde se moviam, também será possível promover a liberdade de circulação global. Não tenhamos medo que não virão hordas de bárbaros invadir o nosso jardim.

Sem utopias não há esperança e sem esperança não há futuro. Pela liberdade global de circulação de pessoas é um grito do (e com) futuro. No fundo pela abolição da obrigatoriedade de viver onde não se quer e do direito universal de sonhar por “greener pastures”. Pela liberdade de ir.

Professor da Universidade do Porto e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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