Foi a ambição do “casal imperial” de Iguala que levou ao massacre dos estudantes mexicanos

O México continua revoltado e mobilizado na busca pelos estudantes desaparecidos, apesar de as autoridades já terem anunciado que eles foram mortos por narcotraficantes.

“Chegaram vivos, queremo-los vivos”
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"Levaram-nos vivos, queremos-los vivos" Daniel Becerril/Reuters
 A “parelha imperial”
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O “casal imperial” JESUS GUERRERO/AFP
Portesto junto ao palácio presidencial na Cidade do México
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Portesto junto ao palácio presidencial na Cidade do México Edgard Garrido/Reuters

Nada indica, até agora, que José Luis Abarca Vélazquez, o autarca da localidade mexicana de Iguala onde 43 estudantes desapareceram sem deixar rasto há mais de um mês, e a sua mulher María de los Ángeles Pineda Villa, que foi detida com ele no início da semana, tenham dado com a língua nos dentes e confessado o que sabem sobre o caso que mantém o México em choque e em suspenso – apesar da esperança manifestada pelo próprio Presidente do país, Enrique Peña Nieto, de que com a sua prisão fosse finalmente deslindado o mistério sobre o destino dos jovens.

O casal, que se pôs em fuga há 40 dias, na sequência da comoção e indignação pública após o ataque e sequestro dos estudantes, tornou-se o principal protagonista de uma saga que expõe a corrupção e a violência associada ao narcotráfico, e também a arrogância e impunidade daqueles que se movem no submundo, que numa penada vieram revelar a disfuncionalidade das instituições e a fragilidade do Estado de direito no México.

O país continua revoltado e mobilizado na busca pelos estudantes “normalistas”, assim designados por frequentarem escolas “normais”, o nome dado aos estabelecimentos que dão formação para o magistério e que funcionam, tradicionalmente em regime de internato, no meio rural. O grupo de desaparecidos frequentava a escola de Ayotzinapa, e viajava para a Cidade do México para participar em mais um protesto contra a reforma educativa do Presidente Peña Nieto. De caminho para a capital, tinham paragem marcada em Iguala: “Chegaram vivos, queremo-los vivos”, dizem as faixas nas sucessivas manifestações por justiça que ainda se multiplicam pelo país – apesar de o Procurador-geral da República, Jesús Murillo Karam, já ter anunciado aos mexicanos a morte dos jovens às mãos do cartel do narcotráfico Guerreros Unidos.

A detenção dos fugitivos José Luis e María de los Ángeles, refugiados sem grande estardalhaço e nenhuma glória numa casa abarracada, decrépita e aparentemente abandonada, em Iztapalapa (um subúrbio pobre da Cidade do México), não acabou com o mistério, mas pôs um ponto final na “história de ambição” e ascensão social, política e económica do casal – transformados numa espécie de Bonny e Clyde mexicanos. Os dois são suspeitos de vários crimes graves: só pelos factos ocorridos a 26 de Setembro em Iguala, estão acusados, como autores morais, pela morte de seis pessoas e pelo sequestro dos “normalistas” (uma acusação que pode ser revista quando for oficialmente confirmada a morte dos 43 estudantes). As autoridades acreditam que estejam também implicados no crime organizado, narcotráfico, extorsão e corrupção.

“Cansado de estar escondido”, José Luis Abarca, de 53 anos, entrou cabisbaixo para a carrinha das forças de elite que montaram vigilância ao casebre. A imprensa mexicana escrevia no dia seguinte à detenção que o ex-autarca reclamara da “pressão insuportável” a que estava submetido desde o incidente em Iguala, mas de resto destacava a sua aparente resignação. Já María de los Ángeles manteve a mesma “pose altiva” por que era conhecida em Iguala, destratando os agentes e gritando uma série de exigências na esquadra, segundo revelou o diário Milénio.

No esconderijo, a dupla mantinha duas malas – uma grande, repleta de “objectos pessoais” da mulher, e outra mais pequena, supostamente para os pertences do marido. Um detalhe que, de certa maneira até pode ser usado como metáfora para compreender a dinâmica do casal: era ela a figura maior, mais complexa e com mais a esconder; ele, mais ligeiro, soube governar(-se) com o que lhe coube amealhar.

Filha e irmã de “narcos”
A história de ascensão e queda de casal Abarca começa, como frequentemente acontece neste tipo de contos de fadas que viram pesadelos, na pobreza e obscurantismo. José Luis era um vendedor ambulante de sandálias e chapéus de palha em Iguala, sagaz, fanfarrão mas também complexado pela sua baixa estatura (mede pouco mais do que um metro e meio). Foi o casamento com María de los Ángeles, que diz-se terá conhecido numa loja de vestidos de noiva, há 35 anos, que mudou a sua vida.

A família da noiva já projectava uma “sombra tenebrosa” sobre o seu futuro, assinalou o El País: a mãe e o pai estavam indiciados pelas autoridades como testas-de-ferro do cartel de Arturo Beltrán Leyva, conhecido como o Jefe de los Jefes do narcotráfico; dois irmãos foram executados por suposta traição depois de tentarem apoderar-se da operação após a morte de Arturo; e um terceiro sobrevivente foi entretanto preso pela sua associação aos Guerreros Unidos, nascidos na fragmentação resultante do desmantelamento do cartel Béltran (os irmãos de Arturo viriam entretanto a associar-se aos poderosos Los Zetas, que actuam junto à fronteira do Texas).

“Os Pinedas, como eram conhecidos, controlavam o tráfico de droga no estado de Guerrero e parte de Morelos, quando os irmãos Beltrán Leyva operavam em nome do poderoso cartel Sinaloa. Mais tarde, um dos irmãos, Salomón, foi identificado como o chefe da rede de distribuição de cocaína dos Guerreros Unidos. A droga, que alegadamente vinha da Colômbia e Venezuela e passava pelo México, chegava até à costa leste dos Estados Unidos”, recuperou a Deutsche Welle. Filha e irmã de “narcos”, María de los Ángeles tinha o seu destino traçado.

Supostamente por influência da mulher, conhecida por usar e abusar dos acessórios dourados, Abarca deixou de vender chapéus para se envolver no negócio do ouro e começou a fazer fortuna. Em pouco mais de dez anos, sempre na sombra do narcotráfico, José Luis transformou-se em líder de um conglomerado de negócios (joalharias, centros comerciais) e num proprietário com dezenas de ranchos e mais de 30 imóveis. Segundo a Televisa, nunca se percebeu como José Luis conseguiu tornar-se um milionário da noite para o dia, nem “nunca se soube a origem dos fundos que usou para os seus negócios e investimentos”

Para completar o retrato de homem de sucesso, inscreveu-se num curso de Direito (este ano obteve a licenciatura do centro de Estudos Universitários Sor Juana Inés de la Cruz e a cédula profissional, e entretanto tornou-se dono da Universidade Benemérito das Américas de Iguala) e deu o último passo de uma carreira fulgurante – a entrada na política. O inevitável aconteceu em 2012, pela mão do antigo senador do Partido da Revolução Democrática (PRD), Lázaro Mazón, que o lançou como candidato à presidência da Câmara Municipal de Iguala, uma localidade de 130 mil habitantes que é a terceira maior no estado de Guerrero. Com uma taxa de homicídios três vezes superior à média nacional, o território é um ponto crucial das rotas do tráfico de droga.

Nem a total inexperiência política de José Luis Abarca, nem o facto de ter corrido por fora da estrutura partidária, impediram a sua retumbante vitória eleitoral, a 30 pontos do principal adversário. O antigo comerciante e empresário, com quatro filhos (três meninas e um rapaz), que nunca faltava a uma festa ou evento social, soube aproveitar o cargo para consolidar a fortuna e o poder e alimentar o seu “carácter despótico” – e também o da mulher, que naturalmente era a eminência parda da governação.

Abarca e Pineda constituíam uma dupla formidável, conhecida em Iguala como o “casal imperial”. Juntos, instituíram um regime que vivia no fio da navalha entre a gratidão e o medo – dos que estavam com eles ou contra eles. O marido assegurava os negócios e dirigia a polícia, e a mulher controlava os bandidos: segundo os investigadores, depois da prisão do irmão Salomón, ou El Molon, era ela quem chefiava o cartel dos Guerreros Unidos em Iguala. Nos vários perfis publicados desde a sua detenção, María de los Ángeles aparece invariavelmente como uma mulher maquiavélica e ambiciosa e José Luis como um fantoche sem grandes dilemas morais e insaciável desejo de reconhecimento e poder.

Uma “lição” inesquecível
A mulher do presidente da câmara, que se dedicava a causas sociais e fora nomeada pelo marido para dirigir um organismo municipal para o “desenvolvimento integral da família” fizera-se eleger conselheira estatal pelo PRD. E agora chegara, finalmente, o momento de María de los Ángeles assumir por inteiro a ribalta política: o plano era que se candidatasse ao cargo do marido nas eleições do próximo ano. No fatídico dia 26 de Setembro, um acto público no centro de Iguala foi cuidadosamente encenado para se converter no primeiro acto da sua campanha – por detrás do palco que ocupava a Plaza de las Tres Garantías, estava um grande cartaz com a fotografia da candidata, de semblante sorridente e pele bem tratada com injecções de botox.

Segundo escreveu o jornal El Universal, citando um relatório do Centro de Investigação e Segurança Nacional (Cisen, na sigla em espanhol), a mulher do autarca pediu ao director da polícia municipal, Felipe Flórez Velázquez, que fizesse o que fosse preciso para impedir que um protesto estudantil pudesse estragar a cerimónia de lançamento da sua candidatura. Para a ocasião especial, María de los Ángeles tinha assegurado transporte para 3000 pessoas: os autocarros dos normalistas teriam de ser afastados para garantir que a central de camionagem tinha espaço para acolher os seus convidados.

O pedido não causou o mínimo constrangimento a Flórez Velázquez, aliado político e cúmplice do casal noutros crimes, nomeadamente no assassínio de vários dirigentes membros do movimento de defesa dos direitos campesinos Unidad Popular. De acordo com um processo conduzido pela Procuradoria da Cidade do México, e o depoimento de uma testemunha ocular, o chefe da polícia e o presidente da Câmara torturaram e mataram o engenheiro Arturo Hernández Cardona, líder do Unidad Popular e adversário político de Abarca, que fora raptado juntamente com outros cinco activistas da mesma organização. Outros dois dirigentes, Félix Bandera e Ángel Román também apareceram mortos.

O autarca também é mencionado como suspeito na morte de Justino Carbajal Salgado, um síndico municipal que em Março do ano passado fez chegar às autoridades estaduais uma queixa contra a ingerência da mulher do presidente na administração do município. A ousadia valeu-lhe um espancamento por um grupo de homens armados junto ao edifício da câmara. Dias mais tarde, com o processo ainda em curso, Justino foi morto a tiro à porta de casa.

Na noite de 26 de Setembro, José Luis Abarca estaria ao lado da mulher na praça quando, de acordo com o processo, ratificou a ordem para a polícia municipal manter os “normalistas” longe do centro. Quando os autocarros foram avistados à entrada da cidade pelos chamados “falcões” dos Guerreros Unidos, foi dado sinal à polícia, que pediu instruções: a ordem foi para travar os veículos. A resistência dos estudantes, que ameaçaram prosseguir a pé para o centro, motivou nova troca de comunicações: da praça, a resposta veio com o código A-5, que correspondia ao presidente da câmara, e foi de dar-lhes uma “lição” inesquecível. Imediatamente, a polícia abriu fogo. O confronto acabaria com seis mortos, 25 feridos e – até hoje – 43 desaparecidos.

Em Iguala, a distinção entre quem é polícia e quem é bandido não é fácil. Os agentes são recrutados pelos narcotraficantes e estão ao seu serviço, tal como estava o presidente da câmara. O procurador Jesús Murillo Karam disse que Abarca entregava entre dois a três milhões de pesos (qualquer coisa como 176 mil euros) por mês aos Guerreros Unidos, que depois distribuíam uma parcela à polícia.

Por enquanto, a reconstituição oficial dos factos só permite especular sobre as intenções do casal imperial. Não se sabe se o alibi dos Abarca para a noite do desaparecimento dos estudantes foi improvisado quando perceberam que a situação tinha descambado, ou o casal se limitou a manter a “programação” para essa noite, que incluía uma confraternização com apoiantes e um baile de músicas rancheiras. O que é certo é que ninguém estranhou o seu comportamento, nem a sua calma (ou sangue frio) perante o tiroteio nas ruas, o vaivém de carros da polícia e dos narcotraficantes, a passagem dos estudantes pela esquadra municipal e a sua saída sob escolta dos Guerreros Unidos – que depois terão procedido como se os “normalistas” fossem membros de cartéis rivais. Segundo a versão oficial dos investigadores baseada nas confissões de narcotraficantes entretanto detiods, os jovens foram mortos a tiro, os corpos queimados numa pira com pneus, madeira e outros desperdícios de uma lixeira próxima e as cinzas ensacadas foram atiradas para um rio.

Também não se sabe se os dois planearam mal a fuga ou acabaram por ser ultrapassados pelos acontecimentos. Três dias depois do ataque aos estudantes, Abarca entregou um pedido de suspensão do mandato e, acto contínuo, sumiu com a mulher de Iguala. Na única declaração pública sobre o ataque, garantira não se ter sequer apercebido da confusão na cidade: “Estes foram acontecimentos atrozes, e não tolerarei que no nosso município vigore a impunidade”. O chefe da polícia, Flórez Velázquez, também desapareceu. Quase todos os envolvidos no caso encontram-se agora detidos: antes do autarca e da mulher, as autoridades já tinham deitado a mão ao líder dos Guerreros Unidos, Sidonio Casarrubias Salgado, e a dezenas de agentes corruptos da polícia municipal e “falcões” do cartel da droga. No total, há 72 pessoas na cadeia.

Foi a busca pelos estudantes que acabou por revelar até que ponto o quotidiano de Iguala, dominado pela violência do narcotráfico, podia ser grotesco. Na sequência das investigações, foram identificadas nove valas comuns na área de Pueblo Viejo, nas imediações da cidade, de onde já foram retirados 30 cadáveres calcinados – um primeiro exame concluiu que nenhum correspondia aos manifestantes desaparecidos. Espera-se agora o resultado de novos testes efectuados por uma equipa argentina, com mais experiência em exumações forenses, para determinar a identidade dos homens e também mulheres que esbarraram ou afrontaram a ambição dos donos de Iguala.

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