Entrevista: Faz-nos falta a confiança de Mandela na capacidade de os homens se entenderem

Aos 75 anos, Jorge Sampaio recebe o Prémio Mandela, uma “homenagem aos que dedicaram a sua vida ao serviço da humanidade” que o ex-Presidente português sente como uma responsabilidade acrescida.

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"Em tudo o que tenho feito há sempre uma preocupação de defesa do que é justo" Daniel Rocha

Jorge Sampaio foi convidado para representar a ONU na Luta Contra a Tuberculose semanas depois de deixar Belém, em 2006. Seguiu-se a Aliança das Civilizações, que um amigo próximo lhe descreveu como “uma missão impossível”. Único enviado especial de dois secretários-gerais das Nações Unidas, Kofi Annan e Ban Ki-moon, o ex-Presidente recebe hoje o Prémio Nelson Rolihlahla Mandela, um galardão criado o ano passado pela ONU para consagrar o legado “de reconciliação, transição política e transformação social” do líder sul-africano.

Mais prestigiante ainda por só ser atribuído a cada cinco anos, o prémio vai homenagear sempre um homem e uma mulher de áreas geográficas diferentes, escolhidos por um comité da ONU a partir de nomeações. Houve mais de 200 nomeados para esta primeira edição. Em Nova Iorque, para receber o prémio com Sampaio, estará a oftalmologista da Namíbia Helena Ndume.

Já me disse que o que o faz continuar é a responsabilidade que vem da capacidade que tem de abrir portas, pelos cargos que já desempenhou. Este prémio torna essa responsabilidade ainda maior?
Este prémio vem, sem dúvida, avivar essa responsabilidade e, por isso, torna-a maior. Continuo firmemente convencido de que, se os cidadãos se interessassem mais pela sua vida colectiva, se fossem mais activos na defesa dos 'bens públicos comuns', não só o sentido da solidariedade aumentaria, como se encontrariam mais e melhores soluções para os problemas que hoje afectam todas as sociedades – desde os desafios do urbanismo e da gestão do território, ao da protecção do ambiente, passando pela questão da educação, da habitação, do desemprego, da saúde pública, da resolução dos conflitos…

É um dos dois laureados da primeira edição de um prémio com o nome de Nelson Mandela. Como é que o recorda?
Tenho uma grande admiração pela personalidade e figura política de Nelson Mandela. O seu nome é um grande marco do século XX e espero que a sua influência continue viva e a inspirar as novas gerações pelo mundo fora. Há dois aspectos que quero sublinhar: por um lado, a sua intransigente defesa dos direitos humanos para todos, a sua determinação política na luta libertadora dos sul-africanos e a sua visão da vida em democracia; por outro, a forma, o processo, a abordagem essencialmente não violenta, focada na via do diálogo e de relações cooperativas bem como no respeito pelo outro que toda a vida preconizou para realizar mudanças duradouras e reconciliar as pessoas.

Esta visão e, ao mesmo tempo, profunda confiança de Nelson Mandela na capacidade de os homens, pelo diálogo e por um melhor conhecimento mútuo, poderem construir pontes e entendimentos que, sem negar necessariamente as diferenças, criam laços entre as pessoas que lhes permitem coexistir, respeitarem-se e cooperarem, é para mim um dos seus aspectos mais inspiradores e carismáticos e o legado que nos cumpre explorar sempre mais. Aliás, quando olhamos à nossa volta e para o estado do mundo nos nossos dias, salta aos olhos o quanto uma abordagem deste género nos faz falta, quer seja na Europa entre parceiros europeus, quer no Médio Oriente, quer no conflito israelo-palestiniano, quer nas relações entre estados e povos do mundo islâmico, por exemplo.

Entre os motivos para a atribuição do prémio, o comité cita a luta pela restauração da democracia em Portugal e a defesa, em tribunal, de presos políticos e vítimas da repressão ao regime. Esse lado de advogado activista ficou sempre de alguma forma presente em todas as actividades a que se dedicou?
É sempre difícil ser juiz em causa própria, mas penso que sim! O advogado e militante fazem um, e em tudo o que tenho feito há sempre uma preocupação de defesa do que é justo aliado a um empenho, a uma determinação que se prende com convicções, com princípios, com valores.

Também é referida a defesa da independência de Timor-Leste. Foi uma das suas causas. É uma utopia tornada realidade?
Não reivindico nenhum protagonismo especial, mas valho-me da circunstância de ter tido uma presença constante no processo da descolonização e da independência de Timor, que revestiu as mais diversas formas e que foi concomitante a muitos outros actores, ao longo dos anos. Não poderei esquecer nunca o dia 20 de Maio de 2002, que vivi plenamente como Presidente da República e que culminou precisamente nesse acto singular e irrepetível na história das relações entre os portugueses e os timorenses, entre Portugal e Timor-Leste, quando trocámos entre nós os símbolos da nossa soberania. Mais do que utopia, Timor foi uma sem dúvida uma das causas diplomáticas fortes dos últimos 40 anos.

Quando deixou a Presidência, sabia o que queria fazer? Ou não chegou a pensar nisso antes do convite de Kofi Annan para ser o primeiro Enviado Especial da ONU para a Luta Contra a Tuberculose?
Quando em Março de 2006 terminei o mandato como Presidente não tinha ainda planos precisos sobre o que iria fazer, na certeza porém de que sabia que não iria ficar de braços cruzados. Depois de um cargo como aquele, há um dever de reserva e, digamos, de resguardo que limita os campos de actuação. Por outro lado, há um imenso potencial em termos de utilidade pública para o país que não deve ser desperdiçado. Aliás, se assim não fosse, não faria sentido apetrechar os ex-presidentes com instrumentos de trabalho, como é o caso.

O que aconteceu é que o convite de Kofi Annan surgiu algumas semanas após ter deixado Belém, a que se encadeou, no ano seguinte, o convite de Ban Ki-moon para a Aliança das Civilizações. Foi, a meu ver, uma feliz oportunidade de simultaneamente continuar a servir Portugal e ao mesmo tempo a contribuir para o bom nome do nosso país no plano externo.

A luta contra a tuberculose foi muito desafiante, levou-a a muitos pontos do mundo e a contactar com os mais pobres e muitas vezes mais esquecidos. Foi um trabalho compensador?
Mais do que compensador, foi útil para as causas que me foram confiadas. Nem sempre é fácil avaliar os benefícios da advocacia – por serem muitas vezes difusos, diferidos no tempo e dificilmente mensuráveis. Mas no plano da luta contra a tuberculose, muito foi feito para lhe dar mais visibilidade como desafio de saúde pública global, para mobilizar vontade política, planos de acção e mais recursos nos países mais afectados, para incentivar a investigação na procura de vacinas, medicamentos e novos meios de diagnóstico, para estimular uma abordagem mais coordenada da co-infecção TB-HIV, para sensibilizar as sociedades para lutar contra o estigma e a discriminação e reforçar a sua capacidade reivindicativa.

A Aliança das Civilizações era o caminho natural? Sei que também não esperava esse convite.
O convite que me foi dirigido para encabeçar a Aliança das Civilizações foi totalmente inesperado. De resto, até já contei várias vezes a história do que aconteceu … Um dia, tinha acabado de chegar a Nova Iorque, onde ia ter um encontro com o secretário-geral por causa da Tuberculose, e toca o telefone, ia eu a caminho de Manhattan. Ouvia-se mal, mas era o embaixador de um determinado país que me queria falar da conversa com o secretário-geral, o que achei estranhíssimo, pois não havia qualquer relação especial entre a questão da tuberculose e o dito pais… O embaixador, por seu turno, falava por meias palavras, afiançando-me do total empenho da sua capital… Acabou a conversa, estava mais intrigado no final do que no início. A verdade é que só algumas horas mais tarde, quando me reuni com o secretário-geral e, terminada a audiência, ele me chamou à parte para me transmitir o convite para a Aliança das Civilizações é que se fez luz!

Confesso que a minha surpresa foi total, tive de estudar muito, porque não me sentia especialmente preparado para abordar devidamente todas aquelas matérias, complexas e delicadas, de que a Aliança trata. Logo nessa altura, um bom amigo meu disse-me: 'Você tem uma missão impossível.' E, de facto, a imagem que me vem sempre à cabeça quando penso na Aliança é a do mito de Sísifo … Penosos esforços para fazer avançar um rochedo encosta acima, para logo depois resvalar, algumas vezes muito, outras menos…

Os contactos que fez ao longo desses sete anos ajudaram a perceber a urgência de se lançar na Plataforma de Emergência para os Universitários Sírios?
Não há nenhuma relação de causalidade, mas há, sem dúvida, uma certa continuidade e um enorme sentido de urgência em não deixar morrer de desesperança toda uma geração de sírios, em lhes abrir horizontes de futuro e de esperança. E isto não se aplica só aos estudantes, antes se repercute nas famílias, nos amigos... Cada estudante que recebe uma bolsa de estudo é como uma estrela que se acende no horizonte negro que impende sobre as famílias e as comunidades sírias e lhes traz esperança em dias melhores. 

Olhando para a Síria, e para a falta de solidariedade da União Europeia face à crise global de refugiados, parece uma causa quase perdida. Mas a verdade é que faz a diferença para muitas pessoas. É esse o caminho para ir mudando o mundo, lutar independentemente da vontade das lideranças políticas, encontrar parceiros e avançar?
Não tenho disso a menor dúvida, mas também não há que ter ilusões: problemas políticos requerem soluções políticas e quanto mais se adiarem as soluções maior será a tragédia, a destruição e as dificuldades.

Um dos laureados deste ano do Prémio Norte Sul, André Azoulay, dizia-me que, “se tomamos em conta a sociedade civil, percebemos que as pessoas têm uma curiosidade pelo outro e um apetite de partilha que não encontramos nos líderes políticos”. Hoje sente o mesmo?
Sinto hoje, como de resto foi sempre essa a minha percepção no quadro da Aliança das Civilizações – há uma enorme disponibilidade, abertura e 'apetite' por parte da sociedade civil, dos jovens, das comunidades locais de cruzar saberes, experiências e visões do mundo, de construir pontes, de animar diálogos e desenvolver cooperações. No âmbito da Aliança das Civilizações, organizámos três escolas de Verão em Portugal e uma em Malta reunindo cerca de uma centena de jovens de todo o mundo – da América Latina, de África, do Médio Oriente, da Ásia, da Europa –, jovens que vinham de Israel e da Palestina, da Índia e do Paquistão, de Gaza, do Irão, de Caxemira … A forma como, em poucos dias, estes jovens conseguiam construir uma dinâmica de diálogo e de desenvolver um relacionamento cooperativo de descoberta e de afeiçoamento mútuos, apesar de tudo os que os separava e dividia, é absolutamente inesquecível.

As revoltas árabes que inspiraram protestos na Europa e nos EUA foram um momento de esperança, arrasado entretanto pelo autoritarismo e pelo extremismo. A UE, sem uma política externa comum efectiva, parece ter já pouco também a dizer aos seus próprios cidadãos. Consegue manter algum optimismo?
Há momentos na vida em que o optimismo deixa de ser um estado de alma para passar a ser um acto de fé na humanidade e, nesse sentido, não nos deixa ser pessimistas. Mas nos tempos que correm, há muitas razões para se estar inquieto.

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