Familiares separados pela guerra da Coreia reencontram-se depois de 60 anos

Pyongyang aceitou retomar o programa de reuniões familiares que fora suspenso em 2010.

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Kim Sung-yun, de 96 anos (à esquerda), conversa com a irmã Kim Seok-ryeo, de 80, e as sobrinhas, que ficaram no Norte REUTERS/Lee Ji-eun/Yonhap

Pela primeira vez em mais de 60 anos, famílias separadas pela guerra da Coreia e a posterior divisão da península em Norte e Sul puderam reencontrar-se, depois de o regime de Pyongyang e o Governo de Seul terem acertado a retoma do programa de reuniões, que tinha sido interrompido em 2010.

O reencontro, que envolve 200 familiares, a grande maioria dos quais bastante idosos, decorre numa estância turística das montanhas Kumgang da Coreia do Norte, a cerca de 50 quilómetros da fronteira – para onde viajaram dezenas de autocarros e algumas ambulâncias do país vizinho.

Jang Choon, de 81 anos, ia poder voltar a ver o seu irmão mais novo Ha-choon, “que ainda nem sequer tinha começado a escola” quando se separaram, contou à Reuters. Incorporado no Exército da Coreia do Norte aos 19 anos, Jang foi feito prisioneiro na guerra (1950-53) no Sul, onde ficou depois de libertado, em vez de regressar à província natal de Hamgyong, junto à fronteira com a Rússia, onde deixou a família.

“A última vez que o vi ele era uma criança, mas agora é um velho como eu”, notou o octogenário, que fez questão de comprar um fato novo para o ansiado reencontro com o irmão e a irmã. Até há quatro anos, Jang não tinha qualquer informação sobre a família: uma carta da Cruz Vermelha, que apoia os esforços de reunião familiar na Coreia do Sul, não só dava conta da sua história como trazia fotografias do casamento do irmão. “Sempre que tenho saudades deles volto a ler a carta. Tinha jurado a mim próprio que não morria sem os voltar a ver”, contou.

Jang Choon é um dos 128 mil cidadãos da Coreia do Sul oficialmente registados como sendo provenientes de uma família separada pela guerra da Coreia: de acordo com o Ministério da Unificação, em Seul, mais de 40% dos indivíduos dessa lista morreram sem voltar a ter contacto com os seus familiares depois da assinatura do armistício que pôs fim ao conflito.

Os dois países iniciaram um programa de reunificações familiares em 1985. Desde então, já se realizaram 18 encontros, que proporcionaram a mais de 18 mil pessoas uma derradeira oportunidade para rever os pais e irmãos ou para conhecer sobrinhos e primos. Mas as iniciativas nunca tiveram um calendário regular, e muitas vezes foram travadas por motivos políticos – aliás, o encontro que arrancou nesta quinta-feira foi originalmente agendado para Setembro, e esteve quase a ser novamente cancelado pela Coreia do Norte no início deste mês, em retaliação pela realização de um exercício militar conjunto do Coreia do Sul e Estados Unidos.

Coreia do Sul selecciona participantes através de lotaria
O Ministério da Unificação da Coreia do Sul recebe inscrições para os encontros familiares, e selecciona os participantes em cada evento num processo de “lotaria electrónica”. Segundo a AFP, a lista de espera tem cerca de 71 mil nomes, 80% dos quais com mais de 80 anos. Na Coreia do Norte, o processo é menos transparente e vários analistas dizem que tem contornos políticos – como notou à Reuters o professor Kim Seok-hyang, especialista em estudos sobre a Coreia do Norte na Ewha Womans University, terá sido por causa da actual escassez alimentar que o Presidente Kim Jong-un cedeu e autorizou a reunião. “Esta era quase a última cartada para poder dizer que não negligencia o seu povo”, referiu.

Os visitantes da Coreia do Sul chegaram carregados de mantimentos – alimentos, roupa, medicamentos – para entregar aos seus irmãos. Kim Dong-bin, de 78 anos, comprou casacos e meias para a irmã. “Sei como os Invernos são duros e como os sistemas de aquecimento não funcionam”, desabafou. Kim interrompeu o tratamento de quimioterapia para tratar um cancro ao pulmão para poder dizer à irmã que não foi para o Sul, aos 16 anos, para ter uma boa vida sem pensar no resto da família. “Quero que saibam que não os abandonei, mas que fui um refugiado, envolvido pela crise e o caos dos ataques a Pyongyang. Espero há anos para poder desfazer este mal-entendido com a minha irmã, em pessoa”, explicou à Reuters.

Lee Ok-Ran, de 84 anos, abasteceu-se de pacotes de biscoitos “Choco Pie” para as duas irmãs Ok-Bin e Ok-Hi, que viveram toda a vida na província de Hwanghae, no Norte. “Toda a gente diz que estes biscoitos são muito populares mas muito caros lá no Norte”, disse Ok-Ran, que também leva analgésicos e outros remédios e roupa quente para entregar-lhes.

As reuniões familiares são a única forma de contacto legal entre os familiares separados pela guerra, que terminou com um acordo de cessar-fogo e não um tratado de paz. Os eventos são sempre realizados em território norte-coreano.

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