Europa: a urgência democrática

Não há hipótese de sobrevivência para uma União Europeia receosa dos seus cidadãos.

Um espectro paira sobre a Europa: o espectro dos cidadãos. A União não se pode construir sem os europeus, numa espécie de autismo vanguardista. A tentação de fazer a União contra os europeus levará à sua desintegração, com riscos acrescidos do regresso à Europa dos nacionalismos, de tão má memória.

Os europeus acabam de mostrar um grande descontentamento com a União Europeia. A abstenção já era a imagem de marca das eleições europeias, um problema que nunca foi frontalmente enfrentado, e o populismo também não é novidade – mas a dimensão dos dois fenómenos é deveras preocupante. Se alguma dúvida houvesse sobre o crescimento do populismo, os resultados eleitorais confirmam-no plenamente, trazendo à tona todos os velhos fantasmas da Europa – o medo do mundo, a xenofobia e o racismo –, num discurso que em muitos países tem sido banalizado por partidos democráticos.

Seria um erro reduzir as eleições ao triunfo da demagogia populista. O populismo é, antes de tudo, consequência da falta de confiança nos partidos democráticos e nas instituições europeias – por isso a atual crise europeia, que as eleições espelham, é uma gravíssima fratura política.

Com a crise económica e social muitos cidadãos acordaram brutalmente para a realidade de que a União Europeia não é uma questão de política externa, mas tem a ver com questões tão essenciais como o emprego ou as reformas. O voto do 25 de Maio é um grito de protesto contra a política de austeridade, pela sua ineficácia e os seus devastadores efeitos sociais. Mas também é um grito contra uma política que não foi decidida democraticamente e é imposta por entidades com um funcionamento opaco, ou mesmo, como em Portugal ou na Grécia, por uma troika que ninguém elegeu e a quem os próprios governos democraticamente eleitos se dizem ter que submeter.

O défice democrático da União não se resolve com mais e melhor propaganda, como muitos pensam em Bruxelas. O lamento tantas vezes ouvido – não somos amados porque não explicamos bem o que fazemos – é absurdo. Há cidadãos que genuinamente e por vezes com boas razões são contras as políticas seguidas e dizem-no cada vez com mais força. O problema é que a União Europeia vive mal com a opinião dissidente e é forte a tentação de se impor aos ditames populares, escolhendo vias obscuras para ultrapassar o que se pensam ser dificuldades momentâneas, como aconteceu com a recusa do Tratado Constitucional em referendos e a posterior aprovação de um tratado em muitos aspetos idêntico sem consulta popular.

As três maiores forças políticas europeias perderam o apoio de uma larga fatia do eleitorado (com um decréscimo de 88 deputados). Esta eleição confirma que muitos cidadãos europeus perderam a confiança nos partidos que construíram a Europa unida. Por mais que se procurem as diferenças, vinga a perceção, tanto no espaço europeu como nacional, que nada de essencial distingue estas famílias políticas, que da alternância não surge uma real alternativa.

Muitos não votam nas eleições europeias porque consideram que o seu voto não pode mudar as políticas, perante uma capacidade limitada, senão nula, de influenciar as decisões europeias. Forçoso é admitir que têm razão, apesar do reforço dos poderes do Parlamento Europeu. Os cidadãos consideram que é a nível nacional que podem influenciar as políticas e por isso não há indignados europeus, mas somente espanhóis ou portugueses.

Perante o escuro túnel que se apresenta aos nossos olhos, importa não perder de vista que existe uma alternativa: ousar a União Europeia Democrática, respondendo à vontade dos cidadãos, nomeadamente dos mais jovens , de participar e de ser ouvidos. É a consequência natural de uma tendência não só europeia como mundial, a da crescente capacitação dos indivíduos, como atestam os resultados de estudos europeus e norte-americanos (1). Os cidadãos da classe média, hoje potenciados pela educação, a emancipação da mulher e as tecnologias da informação, querem ser ouvidos diretamente, querem uma democracia mais participativa e colocam uma enorme pressão sobre governos incapazes de corresponder às suas expectativas, como sucede em França, onde o Partido Socialista ganhou tudo há dois anos e agora teve apenas 14% dos votos

Os partidos democráticos europeus necessitam de uma reforma profunda que passa necessariamente pela intransigência na defesa dos valores fundamentais, pela abertura ao Mundo, por tirar partido da vontade de participação dos cidadãos, por dar mais protagonismo à sociedade civil, ao poder local e regional na tomada de decisões e na sua execução.

A nível europeu é preciso saber ouvir o grito de revolta e responder com mais solidariedade aos que a austeridade lançou no desemprego e na pobreza. É fundamental reformar as instituições para que a vontade da maioria seja ouvida, retirando poderes legislativos ao Conselho, fazendo do Parlamento Europeu o órgão legislador e criando uma segunda câmara formada por representantes dos parlamentos nacionais.

O pior que se pode fazer é tirar as más lições da revolta dos cidadãos europeus, com partidos democráticos a adotarem a demagogia dos populistas, com a banalização do medo do outro, a islamofobia, as políticas de combate aos emigrantes ou o nacionalismo protecionista. É essencial combater a “lepenização” dos espíritos. É fundamental evitar a tentação de pensar que os cidadãos se conquistam pelo medo; esse é o caminho certo para a desintegração europeia, porque o medo do diferente, do Mundo que aí vem é o medo da própria Europa.

Não há hipótese de sobrevivência para uma União Europeia receosa dos seus cidadãos, nomeadamente dos mais jovens, que faz do populismo o seu farol. A escolha democrática não é fácil, mas é a única que pode garantir a sobrevivência do projecto europeu.

1) Ver Global trends 2030 – Citizens in an interconnected and polycentric world (EUISS) e Global trends 2030: Alternative Worlds (US National Intelligence Council)

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