EUA querem cessar-fogo em vigor na Ucrânia “nas próximas horas”

Relatório da ONU descreve cenário de “devastação sem piedade”. Desde Abril morreram seis mil pessoas.

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ONU denuncia que se vive uma crise humanitária no Leste da Ucrânia JOHN MACDOUGALL/AFP

O ambiente à entrada da reunião entre o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, permitia antecipar o distanciamento das posições na reunião de Genebra desta segunda-feira. Um cumprimento frio, sem direito a sorrisos para as câmaras, abriu o encontro de 80 minutos, durante os quais o conflito ucraniano concentrou as atenções.

A reunião ocorreu dias depois de Kerry ter acusado os dirigentes russos de terem mentido acerca do seu envolvimento no conflito ucraniano que desde Abril já fez cerca de seis mil mortos, de acordo com um novo relatório da ONU revelado esta segunda-feira.

John Kerry mostrou-se “cheio de esperança” de que o conflito entre numa “rota de apaziguamento e não de mais decepções”, mas quis vincar o aviso de que o falhanço na implementação dos acordos será respondido com mais sanções contra a Rússia e que o cessar-fogo deve ser implementado “nas próximas horas, e não certamente em mais do que dias”.

O secretário de Estado norte-americano fez ainda questão de contrariar a visão de Moscovo sobre o papel dos EUA na crise ucraniana. “Acho que o Presidente [Vladimir] Putin interpreta mal grande parte daquilo que os Estados Unidos têm feito ou tentam fazer. Não estamos envolvidos em ‘várias revoluções coloridas’ como ele afirma, nem estamos envolvidos de forma particularmente pessoal”, assegurou Kerry, que referiu tratar-se de “garantir o direito internacional respeitando a soberania e a integridade de outra nação”.

Sergei Lavrov seguiu aquela que tem sido a linha do Kremlin desde a assinatura dos acordos de Minsk, sublinhando os “progressos tangíveis” da implementação do cessar-fogo. “Aqueles que pretendem sabotar um processo pacífico através do fornecimento de armas irão arcar com uma pesada responsabilidade”, afirmou o ministro russo, numa alusão à possibilidade de Washington poder vir a apoiar as forças governamentais com armamento letal – um apelo insistente por parte de Kiev, mas que foi sempre rejeitado pela Casa Branca. Lavrov pediu ainda o fim do “bloqueio de facto” imposto pelo Governo ucraniano às zonas de Donetsk e Lugansk controladas pelos separatistas, que viram serem cortados há alguns meses o fornecimento de bens essenciais e o pagamento de prestações sociais.

“Devastação sem piedade”
As declarações dos dois responsáveis surgem no mesmo dia em que as Nações Unidas publicaram um novo relatório sobre a situação dos direitos humanos no Leste da Ucrânia, que mostra um retrato de “devastação sem piedade”, segundo o Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein.

A contabilização oficial do número de vítimas desde Abril é de 5809, mas o Gabinete de Direitos Humanos da ONU admite que esta estimativa é conservadora e que terão morrido mais de seis mil pessoas. “Muitas baixas continuam sub-avaliadas pelo Governo ucraniano e pelos grupos armados e há provas de que alguns membros das milícias mortos e feridos foram levados para a Federação Russa”, esclarece o relatório – o nono da autoria da ONU sobre a situação na Ucrânia.

O documento menciona também “testemunhos credíveis que indicam um fluxo contínuo de armamento pesado e de combatentes estrangeiros (…) incluindo da Federação Russa” para as áreas controladas pelas forças separatistas. “Isto sustentou e aumentou a capacidade dos grupos armados das auto-proclamadas ‘república popular de Donetsk’ e ‘república popular de Lugansk’ para resistirem às forças armadas governamentais e para lançarem ofensivas em algumas áreas, incluindo perto do aeroporto de Donetsk, Mariupol e Debaltseve.” O apoio aos grupos separatistas foi sempre rejeitado por Moscovo perante as acusações da União Europeia, da Ucrânia, dos Estados Unidos e da NATO.

A ONU faz referência à prática de detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, tortura e maus-tratos pelos dois lados do conflito e condenou a limitação da circulação de pessoas imposta pelo Governo de Kiev sobre as áreas sob controlo separatista. “Presunções de que aqueles que continuam em território controlado pelos grupos armados escolheram ficar são preocupantes e mal ajuizadas”, escrevem os autores. Calcula-se que cerca de um milhão de pessoas tenha fugido das suas cidades para outras zonas do país.

O Leste da Ucrânia vive um período de acalmia nos últimos dias, mas permanecem alguns focos de violência e, sobretudo, continuam a emergir sinais de que o conflito pode reacender a qualquer momento. A discussão centra-se agora na retirada do armamento pesado da linha da frente – um dos pontos angulares dos acordos de Minsk.

Os dirigentes rebeldes asseguram que o processo está a ser cumprido, mas as forças pró-governamentais acusam-nos de estarem a preparar novas ofensivas, com o objectivo de progredir no terreno em Mariupol, no sudeste, e em Artemivsk, a norte de Donetsk. A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), encarregada de monitorizar a implementação do acordo, tem alertado para a recusa dos separatistas em permitirem o acompanhamento de todo o percurso da retirada das peças de artilharia.

Segundo Kiev trata-se de um estratagema para manter posições perto da linha de combate. “Para enganar os representantes da OSCE, os rebeldes estão a mover o equipamento militar da linha da frente (…) e a trazê-lo de volta durante a noite”, disse à Reuters o porta-voz do Exército, Andrei Lisenko.
 

   

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