EUA lançam primeira grande operação contra narcotráfico da Guiné-Bissau

O antigo chefe da Marinha da Guiné-Bissau foi preso. Outro militar indiciado por Washington por narcotráfico continua no poder. Chama-se Ibraima Papa Camará e é chefe de Estado-Maior da Força Aérea.

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Apreensão de droga em Bissau em Março de 2012, um mês antes do golpe de Estado Issouf Sanogo/AFP

O almirante Bubo Na Tchuto, figura influente e controversa das Forças Armadas da Guiné-Bissau, foi extraditado para os Estados Unidos depois de ter sido preso numa operação conduzida por uma brigada de combate ao narcotráfico norte-americana em águas internacionais junto à zona marítima de Cabo Verde.

A notícia foi avançada pela Rádio Televisão de Cabo Verde e por várias agências na quinta-feira. Nunca antes tinha havido a detenção de uma figura do poder da Guiné-Bissau por envolvimento no narcotráfico, apesar dos avisos e pronunciamentos dentro e fora da Guiné a ligar o tráfico de droga – e o seu aumento desde o golpe de Estado de 12 de Abril do ano passado – a militares e políticos do país. Não havia cooperação dos golpistas no poder desde então para uma operação em território da Guiné-Bissau.

Bubo Na Tchuto era, desde 2010, uma das duas altas figuras militares da Guiné-Bissau apontadas como estando envolvidas no narcotráfico, num documento do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos.

Com ele, também responsabilizado judicialmente por Washington por tráfico de droga, o chefe de Estado-Maior da Força Aérea, Ibraima Papa Camará, que continua no poder ao lado do chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), general António Indjai, que chegou a chefe máximo das Forças Armadas em Abril de 2010 depois de destituir Zamora Induta e nomeou Papa Camará (apesar da pressão dos Estados Unidos para não o fazer) e liderou o golpe do ano passado.  

Bubo Na Tchuto sempre negou o envolvimento no narcotráfico, de que se fala desde 2006, em Setembro, quando se realizou a primeira grande apreensão de droga em Bissau. Bubo era então chefe de Estado-Maior da Marinha e foi acusado, nunca formalmente, de ter permitido o descarregamento de uma grande quantidade de cocaína proveniente da América Latina, numa operação conduzida por narcotraficantes colombianos.

Dois colombianos foram então presos por transportarem mais de 670 quilos de cocaína, a maior quantidade de droga apreendida na história do país. Mas pouco tempo depois foram libertados. Foi o primeiro grande caso, de outros que viriam a suceder-se com contornos semelhantes: narcotraficantes da América Latina presos e depois libertados, ameaças em Bissau a quem, nas instituições, do Governo à justiça, tentava barrar o caminho dos traficantes, e sinais de cumplicidade e envolvimento das chefias militares em toda a acção, acompanhados de lutas de poder dentro da instituição, determinadas por esses interesses.

Presos e depois libertados
Também em 2007, dois colombianos, entre eles Juan Pablo Camacho, com supostas ligações ao narcotraficante Pedro Manuel Ortega-Fouz, foram presos em Bissau e depois libertados numa operação em que foram apreendidas armas, munições e quase 100 mil euros que estariam relacionados com o tráfico. Antes, dois militares, incluindo o chefe de gabinete do então CEMGFA Tagmé Na Waie foram presos por suposto envolvimento num descarregamento de droga, e depois libertados quando foi requisitada a sua transferência para os quartéis.

A situação agravou-se. E em 2008 a Liga Guineense dos Direitos Humanos denunciava as ameaças de morte feitas contra a ministra da Justiça, Carmelita Pires, o procurador-geral Luís Manuel Cabral e a directora da Polícia Judiciária, Lucinda Barbosa Ahukarié, desde 2007, pelas “suas posições contra o tráfico de droga e a sua vontade de prender e processar traficantes de droga e os seus cúmplices”.

Hoje a viver em Portugal por motivos de segurança, Carmelita Pires, que assumiu a pasta da Justiça entre 2007 e 2009, congratula-se com esta operação dos Estados Unidos e agradece. "É o coroar de um esforço nacional, desde Abril de 2007, com o apoio internacional. E é um aviso aos narcotraficantes em toda a África Ocidental e, em particular, aos implicados no narcotráfico na Guiné-Bissau", disse ao PÚBLICO. E especifica: "Significa que os implicados não poderão, a partir de agora, agir tão à-vontade porque nas operações de tráfico podem ter de sair do território da Guiné-Bissau."

Se na Guiné não seria possível prender os responsáveis por não haver cooperação das autoridades no poder, fora a situação é diferente, realça a ex-governante. O poder militar instalou-se em Bissau, mas "as polícias norte-americana e internacional continuaram a trabalhar", diz ainda. E conclui: "Ainda bem que os Estados Unidos vieram em socorro ao esforço nacional desenvolvido e por isso temos que lhes agradecer."

Entre esses "cúmplices" referidos no relatório de Direitos Humanos de 2008, está Bubo Na Tchuto. Mas também Ibraima Papa Camará, o segundo nome apontado pelo Tesouro dos EUA como estando ligado, entre outros, ao descarregamento de droga num avião da Venezuela em Julho de 2008.

Nesse caso, dois venezuelanos foram presos em pleno centro de Bissau à saída do Hotel 24 de Setembro, onde estavam alojados. O seu avião chegara à base aérea militar de Bissalanca, perto de Bissau, e a zona ficara protegida por militares e barrada a elementos da Polícia Judiciária e da guarda de fronteira, não podendo a droga ser apreendida. Era um avião de grande capacidade, pilotado pelo venezuelano Vaskez Guerra, contra quem foi emitido um mandado de captura e um pedido de extradição do México, que ficou sem efeito. Os quatro detidos na operação, dos quais esses dois venezuelanos, foram libertados sob pretexto de serem presentes ao juiz de Instrução Criminal para comparecer no Ministério Público. Nunca mais foram vistos em Bissau. Sob pressão da União Europeia, o juiz foi suspenso e quando retomou funções foi colocado no interior do país.

Esse episódio do avião da Venezuela trouxe à Guiné-Bissau elementos da Interpol e da Drug Enforcement Agency dos Estados Unidos, a pedido da parte das instituições guineenses comprometidas com o combate ao tráfico, como a Polícia Judiciária. Também a GNR portuguesa cooperou com o envio de cães farejantes que contribuíram para reunir provas de que o avião transportava grandes quantidades de droga.

A investigação conjunta, com apreensão de material electrónico, permitiu reconstituir os passos dessa operação do avião que aterrou em Bissalanca e concluir um relatório. Esse documento terá contribuído para esta acção judicial do Tesouro dos Estados Unidos, apontando como narcotraficantes Bubo Na Tchuto, ex-chefe da Marinha, e Papa Camará, actual chefe da Força Aérea.
 
A acção judicial emitida pela Secção de Controlo de Activos Estrangeiros do Departamento do Tesouro dos EUA proíbe quaisquer ligações comerciais ou financeiras de cidadãos norte-americanos com Bubo Na Tchuto e Papa Camará, e congela activos que estes possam deter em território americano.

Esta acção, escreveu então o director da secção, Adam J. Szubin, "sublinha o papel nefasto que a corrupção ligada ao narcotráfico desempenha na África Ocidental, especialmente na Guiné-Bissau" e tem como objectivo "limitar a capacidade de [os dois militares] beneficiarem do tráfico de droga e de se envolverem em actividades de desestabilização."

Influência, poder e ascensão
Bubo Na Tchuto foi chefe do Estado-Maior da Armada entre 2003 e 2008 e protagonizou ou foi acusado de várias acções de golpes ou supostos golpes de acordo com a influência que ganhava ou perdia dentro das Forças Armadas. Terá tido um papel na ascensão ao poder de António Indjai.

Numa acção conjunta em Abril de 2010, os dois militares prenderam o primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior e o então chefe das Forças Armadas, comandante Zamora Induta. O primeiro-ministro foi libertado, mas deposto, um ano depois. Zamora Induta nunca regressou ao cargo e está fora do país. António Indjai foi confirmado no cargo pelo Presidente Malam Bacai Sanhá (que entretanto morreu por motivos de saúde) apesar do ultimato da União Europeia que acabou por abandonar a sua participação na Reforma da Defesa e Segurança iniciada no país.  

Quando, em Outubro de 2012, foi questionado pela revista Time sobre o alegado envolvimento das chefias militares no crime organizado e tráfico de droga na Guiné-Bissau, o general António Indjai respondeu: “Mostrem-me as provas disso.”

Já este ano, a Liga Guineense dos Direitos Humanos voltou a denunciar o tráfico de droga como forma de enriquecimento ilícito e principal factor da instabilidade política na Guiné-Bissau mas também como mecanismo "através do qual os oficiais superiores têm vindo a consolidar o seu poder".

Um relatório de Dezembro passado do secretário-geral da ONU Ban Ki-moon ao Conselho de Segurança não deixava margem para dúvidas: o tráfico de drogas registara uma “forte intensificação” desde o golpe de Estado de 12 de Abril liderado pelo general António Indjai. E isso, dizia Ban Ki-moon, num contexto em que a cumplicidade e “o apoio de membros das forças de defesa e segurança e das elites políticas” estavam a permitir que os grupos de criminalidade organizada transitassem mais facilmente pela Guiné-Bissau. “Centenas de quilos de cocaína estarão assim a entrar clandestinamente em cada operação” e cada operação terá lugar “uma ou duas vezes por semana sem nenhuma intervenção dos poderes públicos”, sublinhava o secretário-geral da ONU.

Por essa altura, uma reportagem em Bissau publicada no New York Times sugeria que o golpe de Estado tinha sido motivado pelos interesses do narcotráfico e dos narcotraficantes e chamava ao golpe de 12 de Abril um “golpe de cocaína". 
 

Fotografia alterada (11h00 de dia 6 de Abril) depois de erro detectado na escolha da primeira em que os elementos de uma empresa de segurança privada foram confundidos com militares da Guiné-Bissau.
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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