Estamos a assistir a uma nova migração dos povos?

Para muitas pessoas na Alemanha, esta situação traz à memória a fuga em massa da Alemanha do Leste, em 1989 e 1990, ou até a fuga e expulsão de cerca de 14 milhões de alemães no final da Segunda Guerra Mundial.

Há poucos dias, a agência europeia de protecção das fronteiras Frontex publicou dados actuais sobre as entradas irregulares de pessoas na UE: apenas em Julho foram 107 500, e 340 mil desde o início do ano — um número claramente acima das 280 mil entradas registadas em todo o ano de 2014.

De acordo com o Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, actualmente existem mais de 50 milhões de pessoas refugiadas no mundo, o valor mais elevado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Deixam a sua pátria para fugirem a guerras civis e perseguições políticas, muitos também tentam escapar à pobreza e à falta de perspectivas futuras. Existe um número crescente de pessoas que vê na Europa a sua última tábua de salvação. Numa entrevista recente, a chanceler federal Angela Merkel lançou um alerta, referindo-se às vagas de refugiados como um problema que causava mais preocupações do que a estabilidade do euro. Era necessário assumir esta questão como um projecto europeu, em que a UE, como um todo, tinha de mostrar a sua capacidade de atuar concertadamente.

Deparamo-nos diariamente com as imagens de refugiados nas praias da Grécia e Itália, ou a atravessar os Balcãs a caminho da Europa Central. Na Alemanha assistimos à sua chegada: vão para tendas de acolhimento, alojamentos para requerentes de asilo, aldeias de contentores, apartamentos vagos, e entretanto também são alojados em pavilhões gimnodesportivos das nossas escolas e campos de tendas, por não haver disponibilidade de habitação. Apenas em Julho chegaram à Alemanha 83 mil pessoas e foram feitos 37.500 pedidos de asilo. No ano passado, o número de requerentes de asilo e refugiados ficou abaixo de 200 mil; de acordo com estimativas recentes, este ano esperam-se até 800 mil pessoas i.e., quase 1 % da população alemã, de 82 milhões de habitantes, em apenas um ano.

Para muitas pessoas na Alemanha, esta situação traz à memória a fuga em massa da Alemanha do Leste, em 1989 e 1990, ou até a fuga e expulsão de cerca de 14 milhões de alemães no final da Segunda Guerra Mundial. Agora, o essencial é providenciar alojamento e a assistência necessária, sendo que o alojamento na Alemanha é da responsabilidade dos estados federados e dos municípios. Para este efeito, estimam-se custos na ordem de 10 mil milhões de euros neste ano os estados federados e os municípios reivindicam com cada vez mais veemência o apoio financeiro do orçamento do estado federal. Outra questão prioritária é a de acelerar o processo de análise e decisão dos requerimentos de asilo. Cerca de 40 % dos requerentes provêm de países dos Balcãs Ocidentais (i.e., de países de origem seguros) e não têm uma hipótese credível de serem reconhecidos com o estatuto de asilo. Assim, os serviços administrativos ficam bloqueados, prejudicando quem realmente necessita deles.

Ambas as tarefas constituem um desafio enorme em termos administrativos. Em parte, tenta-se recorrer a pessoas reformadas para prestarem apoio. Contudo, para lidar com vagas de imigração desta dimensão, também é necessária a cooperação de toda a população. Mesmo sem a crise de refugiados, a Alemanha tornou-se o segundo país que acolhe mais imigrantes em termos mundiais. Em 2014, três quartos dos 470 mil imigrantes que contribuíram para o acréscimo populacional alemão (i.e., a diferença entre imigração e emigração) vieram de outros países da União Europeia. Dezassete milhões de pessoas na Alemanha provêm de um contexto migratório, mesmo que muitos entretanto já tenham adoptado a nacionalidade alemã. Na sua grande maioria, os refugiados de guerras civis são bem recebidos (como foi o caso dos refugiados da guerra dos Balcãs no anos 90). Existem muitas iniciativas da sociedade civil que prestam apoio na recepção e integração dos refugiados, doam roupa e cobertores, ou organizam aulas de língua alemã. Infelizmente, também surgem casos de vandalismo e ataques a alojamentos de requerentes de asilo isso sucede em particular na parte leste da Alemanha, que até à data tem pouca experiência com a recepção de estrangeiros.

No ano presente, a Alemanha acolheu cerca de 43 % de todos os refugiados que entraram na UE. Assim, quando a senhora Merkel se refere à necessidade de um "projeto europeu", ela também está a colocar em cima da mesa a questão da solidariedade. Como recentemente o afirmou o Comissário dos Refugiados, António Guterres: não é viável a longo prazo que dois países da UE  a Alemanha e Suécia recebam a maioria dos refugiados. Há quem compare a situação actual com o período da Migração dos Povos no primeiro milénio da nossa Era. Mesmo que estejamos distantes desse momento da história, é necessário que a Europa, como um todo, enfrente a actual situação. Precisamos de nos empenhar muito mais nos países de origem e de trânsito, e de apoiar decididamente os países vizinhos que acolhem refugiados: é que muitos deles pretendem regressar ao país de origem. Precisamos de um controlo eficaz das fronteiras e de combater os traficantes de seres humanos. Precisamos também de uma distribuição mais equitativa dos refugiados na Europa. Está na hora de abrirmos os olhos para este problema e de enfrentarmos colectivamente este desafio.

Embaixador da Alemanha em Portugal

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