Escola Sem Partido?

Na página de Facebook do MESP, apela-se que votem a favor do projeto os deputados que “amam seus filhos e sua Pátria”. Mas não os que amam a democracia.

As mudanças políticas nunca vêm sós. Arrastam processos de mudança cultural e nas várias políticas públicas que afetam a vida quotidiana e o exercício da cidadania. E inevitavelmente, o funcionamento da democracia. Por vezes a própria sobrevivência desta.

É o que está a acontecer no Brasil. O impeachment de Dilma Rousseff, praticamente concluído, não é mais que uma etapa do processo de radicalização das direitas americanas que atravessa todo o continente, que já conseguiu derrubar presidentes reformistas por meio de golpe militar (Honduras) ou constitucional (Paraguai, Brasil), por via eleitoral (Argentina), e ameaça seriamente os governos venezuelano, boliviano e equatoriano, e que pode ter na eleição de Donald Trump um passo decisivo. E muito perigoso.

O Congresso mais moral e politicamente reacionário dos últimos 30 anos de história brasileira tem em mãos um projeto do Movimento Escola Sem Partido (MESP), criado em 2004, que, dizendo pretender evitar a “doutrinação política e ideológica” na escola, quer impor um esquema de censura moral e política na elaboração dos programas educativos, dos exames e de todas as práticas escolares, negando explicitamente a liberdade de expressão dos professores (que o MESP considera inconstitucional) e criminalizando o exercício do direito constitucional à “liberdade de ensinar”. A tese é que o Professor não é educador, título de um livro editado na "Biblioteca Politicamente Incorreta" que o MESP tem promovido, retórica a que, desde há anos, se têm agarrado os conservadores deste mundo, islamistas ou católicos integristas, Direita religiosa americana ou banais misóginos, que se sentem horrorizados com a gradual eliminação da lei de barreiras discriminatórias de classe, de género, étnicas, religiosas, de orientação sexual, fundadas em preconceitos que a ciência demonstrou (não hoje mas há muito tempo!) não terem qualquer validade racional.

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Imagem partilhada num comentário na página de Facebook do Escola Sem Partido

Descreve-se, assim, a escola pública como pasto de partidos políticos, de que os professores não serão mais do que agentes que nela se infiltram para, "a pretexto de 'construir uma sociedade mais justa' ou de 'combater o preconceito', utilizar o tempo precioso de suas aulas para 'fazer a cabeça' dos alunos sobre questões de natureza político-partidária, ideológica e moral" (MESP, Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar"). Ao acusar o PT de ter "infiltrado" a escola para nela fazer “doutrinação ideológica marxista" a direita brasileira procede a uma pobre reprodução do que os antissemitas alemães acusavam os judeus em 1930. O discurso de hoje nem é sequer simplesmente o de uma espécie de maccartismo-60-anos-depois. Ele insinua que a escola, adotando programas de educação sexual e de formação cívica, "se [imiscui] na orientação sexual dos alunos e [permite] práticas capazes de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo" (anteprojeto de Lei Federal nº 867/2015), o que o MESP pretende interditar. Se este projeto for aprovado, passará a "[ser] vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero" - designação sem rigor algum que esta gente atribui a um campo interdisciplinar de estudos científicos, das Ciências Sociais à Medicina, que, desde os anos 80, têm contribuído, como é dever da ciência, para uma leitura crítica da sexualidade, da construção social dos preconceitos morais e das identidades.

Que este neoconservadorismo religioso reduza ciência a “doutrinação ideológica” diz tudo da sua leitura do mundo. Não surpreende que no mesmo projeto de lei se proíba todo o professor de "[fazer] propaganda político-partidária em sala de aula [e de] incitar seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas" – o que diriam eles das manifestações dos colégios portugueses nos últimos meses? – ou se o obrigue a "respeitar o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções" (art. 4º, III e V). Nos últimos 250 anos, na contestação que as igrejas e os conservadores fizeram da educação pública, denunciando o estatismo e (como agora se lhe chama) o totalitarismo laicista, atacou-se, antes de mais, os professores, tornando-os vítimas prioritárias das transições autoritárias. O "ódio contra os professores" de que Fernando Penna (professor da Univ. Federal Fluminense, que, com invulgar coragem e persistência, tem desmontado a argumentação do MESP) acusa estes militantes da censura pedagógica, teve precedentes terríveis no séc. XX, como os 21 mil professores primários que Franco, durante e após a Guerra de Espanha (1936-39), despediu ou sancionou, sem contar com uns quantos milhares de fuzilados. Outro projeto de lei que está em discussão no Congresso brasileiro prevê nada menos que penas de prisão para todos os professores que "[utilizem] qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto" (Projeto de Lei nº 2731/2015). O projeto do MESP, pelo seu lado, quer impor a afixação "nas salas de aula e nas salas dos professores de cartazes com o conteúdo previsto no anexo desta Lei", estabelecendo seis "deveres do professor". Mais: impõe a criação de "um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato", as quais "deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente" (art. 8º). Ou seja, convite à delação e prisão para quem lecionar uma aula de educação sexual ou de Revolução Cubana!

"Professor tem de ensinar Português e Matemática, se passar das matérias relevantes deve ser processado ou espancado", escrevia-se num comentário postado na página do MESP. Já em 1936, na reforma do Ensino Primário de Carneiro Pacheco, dizia-se que a escola devia limitar-se a transmitir o “ideal prático e cristão de ensinar a bem ler, escrever e contar, e a exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal”; tudo o resto era o que os salazaristas achavam ser o "fetichismo" republicano pelo alfabeto... Como bem nota Fernando Penna, “o projeto tenta transformar em lei uma concepção absolutamente deturpada de todos os elementos que constituem o processo de escolarização”, descrevendo a sala de aula como “um cativeiro, pois para [o MESP] os alunos são literalmente uma audiência cativa. Esta metáfora é levada ao extremo quando, na página do movimento, a relação entre alunos e professores é entendida como um caso de Síndrome de Estocolmo, na qual os jovens se apegam emocionalmente aos docentes que seriam seus ‘sequestradores intelectuais’” (“Proibido educar?”, in Revista de História.com.br).

Na página de Facebook do MESP, apela-se que votem a favor do projeto os deputados que “amam seus filhos e sua Pátria”. Mas não os que amam a democracia.

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