Empresário italiano vítima de tortura na Guiné Equatorial

Roberto Berardi foi preso em Janeiro de 2013, depois de questionar a gestão de uma empresa criada com o filho do Presidente Obiang. Três organizações internacionais acompanham o caso. País entra este mês para a CPLP como membro de pleno direito.

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Teodorin Obiang é o filho mais velho do Presidente da Guiné Equatorial Abdelhak Senna/AFP
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O Presidente Obiang em Março em Madrid Andres Ballesteros/Reuters

Como vários empresários estrangeiros, vítimas de extorsão e de ameaças na Guiné Equatorial, o italiano Roberto Berardi aceitou a principal condição imposta pelo regime para investir no país: associar-se, sem receber contrapartidas, a um membro da família mais próxima do Presidente. Em 2008, recebeu o convite do filho mais velho do chefe de Estado e seu provável sucessor, Teodorin Nguema Obiang Mangue. Mudou-se para a Guiné Equatorial e criou com ele uma empresa de construção, a Eloba Construcciones SA de que foi director-executivo até ser preso em Janeiro de 2013.

Berardi permanece desde então na prisão de Bata, segunda maior cidade do país, onde tem sido vítima de tortura e se encontra em perigo de vida, segundo denunciam a Human Rights Watch (HRW) e a Organização Mundial contra a Tortura (WOAT, na sigla em inglês).

O empresário foi posto em isolamento em Dezembro passado, sem contacto com o exterior, numa cela de 2,5 por 3 metros. A família em Itália, cujos testemunhos contribuem para o trabalho das duas organizações, teme pela sua vida. E acredita que o objectivo do regime é ver Berardi morrer na prisão para não depor em processos judiciais contra Teodorin Obiang. Este é acusado de corrupção e compra de bens e propriedades, através de práticas criminosas, nos Estados Unidos e em França, que em 2012 emitiu contra ele um mandado de captura internacional.

O Presidente Obiang é esperado no próximo dia 23 de Julho em Díli, na cimeira de chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Na reunião de alto nível, que se realiza de dois em dois anos, deverá ser formalizada a adesão do país como membro de pleno direito depois de em Fevereiro passado, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos oito países lusófonos terem aprovado a entrada por considerarem que a antiga colónia espanhola cumpriu o roteiro previsto para os direitos humanos.

Ao longo deste ano e meio na prisão, várias vezes Roberto Berardi teve crises de malária, sofreu de disenteria e muitas vezes apresentou uma condição física muito debilitada. Mas nunca esteve tão doente como esta semana, garante a família com base num relatório médico, acompanhado por análises feitas no laboratório do Hospital Universitário de Bata, datado da última segunda-feira, 30 de Junho, e enviado ao PÚBLICO.

Berardi sofre de desnutrição, tem febre tifóide e um enfisema pulmonar e precisava há vários dias de ser medicado com urgência. Depois de insistentes pedidos da família, foi transferido ontem para o hospital. Stefano Berardi, irmão de Roberto, numa carta ontem enviada à responsável do Comité Internacional da Cruz Vermelha para a região da África Central, escrevia: “Estão a tentar matá-lo na prisão.” E acusava o filho do Presidente de ser responsável pela sua ordem de detenção e pelos obstáculos criados ao tratamento de Berardi em Bata.
“Não há provas contra ele”, garantiu numa entrevista por email o seu advogado Ponciano Mbomio Nvó, que explica que o empresário de 49 anos não teve oportunidade de deixar o país antes de a sua situação se agravar, como o fizeram outros empresários antes dele.

“Ele era administrador da sociedade Eloba Construcciones, mas era o seu sócio [Teodorin Obiang] quem dispunha da conta de maneira ilegal. Assim que se apercebeu do desvio de fundos, Berardi dispôs-se a perguntar ao banco o que acontecera e o seu sócio ordenou a sua detenção e prisão. A justiça limitou-se depois a condená-lo sem provas suficientes”, defende o advogado.

E acrescenta: “A saúde de Berardi está muito debilitada. Posso visitá-lo mas ele está sob forte vigilância dos militares que guardam a prisão e esta depende do Ministério da Defesa”. Ponciano Nvó acredita que a libertação do italiano só seria possível com um indulto do Presidente Obiang, uma vez que o seu filho “não quer que Berardi testemunhe no processo judicial nos Estados Unidos”. Alguns dos ex-colegas estrangeiros de Berardi na empresa têm sido ouvidos pelos procuradores do Ministério Público norte-americano.

Na cimeira União Europeia-África no início de Abril passado, o Presidente Obiang prometeu libertar Berardi “por razões humanitárias”. Fez a promessa a Antonio Tajani, vice-presidente da Comissão Europeia, mas nada aconteceu até agora.  

Quando a Eloba Construcciones SA foi criada, em 2008, Teodorin Obiang desempenhava um cargo ministerial mas viria a tornar-se em Maio 2012, por decisão presidencial, no segundo vice-Presidente, um alto cargo não contemplado na Constituição, que lhe confere vastos poderes e o coloca como provável sucessor do pai na presidência de um país, onde as eleições – legislativas ou presidenciais – lhe têm sido sempre favoráveis, com resultados próximos dos 90% dos votos.
Criada a empresa, Teodorin Obiang detinha 60% e Berardi 40% das acções da empresa de construção com sede na mesma cidade onde agora está preso. Foi condenado em Agosto a dois anos e quatro meses por “apropriação indevida” de activos da sociedade.

À semelhança de empresários espanhóis ou franceses, que sofreram ameaças e extorsão (tendo alguns também estado presos), e que contaram a sua história na imprensa espanhola ou francesa, no último ano, também Berardi poderia ser uma importante testemunha para a investigação criminal contra Teodorin em França.

Como por exemplo Germán Pedro Tomo, “uma das testemunhas principais contra Obiang, que não passeia sozinho nas ruas de Madrid”. Ou de outros mantidos sob anonimato e que levaram o El País a escrever um artigo intitulado “A extorsão dos Obiang”, em Março de 2013. Ou de Jorge, que não revela o apelido e admite ter pago comissões milionárias para poder investir na antiga colónia espanhola. Entre 2009 e 2011, diz ter perdido milhões de euros em equipamento investido na Guiné Equatorial. E conta como tudo começou com uma primeira conversa na casa de Teodorin, perto dos Campos Elísios em Paris. “Ele tratava directamente com os empresários. E só para se estar sentado frente a ele era preciso pagar 40 mil a 100 mil euros. Mas só quando se levava o equipamento, começavam os verdadeiros problemas”, diz, acrescentando que as ameaças para quem não aceita as regras é a prisão de Black Beach, conhecida como a pior do país. Outros empresários espanhóis, que passaram pela Guiné Equatorial, têm contribuído para as investigações em França.

Negócios envenenados 
Os casos avolumam-se, pelo menos, desde 2007 quando Igor Celotti, também italiano, morreu em circunstâncias nunca esclarecidas na Guiné Equatorial. O jornal La Stampa contava no ano seguinte como o corpo de Celotti tinha sido encontrado carbonizado depois de um suposto acidente aéreo num Cessna, em que o piloto escapou ileso.
Outros empresários têm contado as suas histórias na imprensa espanhola: J. M. González foi espancado e vítima de extorsão depois de se envolver num negócio e na construção da mansão da sobrinha do Presidente; Roberto Cubría foi obrigado a refugiar-se durante quase dois meses, em 2009, na embaixada espanhola na capital Malabo, depois de uma disputa com a filha do Presidente, Genoveva Ademe Obiang.

“A Guiné Equatorial não é um lugar seguro para os empresários espanhóis. Não é legalmente seguro, mas também não é fisicamente seguro”, escrevia o El País na sua edição de 22 de Junho passado. “Aquilo que aparece como um grande negócio cheio de oportunidades transforma-se, para alguns, num inferno.”

Mas quase todos, à excepção de Igor Celloti, conseguiram sair antes de a sua história os transfigurar como sucede há meses com Roberto Berardi.

“Roberto Berardi é em parte vítima das circunstâncias”, diz ao PÚBLICO Kenneth Hurwitz, responsável pelos assuntos legais na Open Society Justice Initiative, uma organização com sede nos Estados Unidos que investiga e denuncia casos de corrupção nas altas esferas do poder em vários países e está liagada ai multimilionário e filantropo George Soros.

“Por um lado – diz o especialista - Teodorin estava a extorquir todos os pagamentos relativos a contratos de construção firmados com o Governo. E por outro, estava a usar uma conta fantasma, a que deu o nome de ‘Eloba’ para lavar dinheiro nos Estados Unidos”.

A informação consta da queixa dos procuradores do Ministério Público em Los Angeles, a que o PÚBLICO teve acesso. O documento exclui Berardi de quaisquer actos ilícitos ou conhecimento deles: “Nguema [Teodorin] usou a Eloba como veículo para roubar fundos públicos.”

Kenneth Hurwitz  sublinha que “Teodorin também é acusado de corrupção em França e tudo isto acontece num contexto em que o seu pai está a ficar velho e a batalha pela sucessão já começou.” E acrescenta: “Só a mãe de Teodorin o apoia, enquanto a maioria do clã no poder o considera assustador e incompetente.”

Apelos internacionais
Organizações internacionais, como a Human Rights Watch (HRW) e a Organização Mundial contra a Tortura (WOAT, na sigla em inglês) lançaram apelos à libertação de Berardi.

Num comunicado publicado ontem, a HRW diz que Berardi foi preso para não revelar informações secretas sobre o regime. E a WOAT já em Fevereiro alertava para a situação de mau trato, tortura e espancamento do recluso italiano por guardas na prisão.

A WOAT pede às autoridades para garantirem que Berardi seja tratado de acordo com a lei internacional de direitos humanos, que a Guiné Equatorial garante cumprir, no quadro da sua adesão à CPLP.

“Muitos empresários portugueses estão esperançados” com a perspectiva dessa adesão, diz Ana Lúcia Sá, investigadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, sobre a percepção de que a ex-colónia espanhola. Esta é hoje o terceiro maior produtor de petróleo em África, vista como um promissor destino de investimentos. “Mas muito vai depender de quanto [os empresários] estão dispostos a pagar à família do Presidente para fazerem esses negócios”, diz.

“A Guiné Equatorial é uma armadilha para os empresários estrangeiros. Chegam e vêem muita riqueza e aparentes oportunidades. Mas quando percebem que têm de avançar com todo o capital, e se porventura se queixam, arriscam a prisão ou pior”, conclui Kenneth Kurwitz. Como Berardi que, depois de 20 anos dedicados aos negócios em países de África, como a Costa do Marfim ou os Camarões, acreditou nas oportunidades oferecidas na Guiné Equatorial pelo filho do Presidente.

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