Maduro teve de aumentar o preço da gasolina, mas diz que a revolução continua

Presidente da Venezuela reconheceu recessão de 5,7% e apresentou novas medidas de corte da despesa pública. “Tornou-se uma necessidade absoluta”, justificou.

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Trabalhadores da petrolífera estatal venezuelana assistem a um comício de Maduro Carlos Garcia Rawlins/REUTERS

E se, de repente, o Governo da Venezuela decide aumentar em 6000% o preço da gasolina, isso ainda é socialismo bolivariano? Absolutamente, garantiu o Presidente Nicolás Maduro, que perante o estado de calamidade económica que o país atravessa anunciou uma série de medidas “ortodoxas” de contenção orçamental e corte da despesa pública. “Não é nenhum pacote neoliberal”, rejeitou; o projecto revolucionário chavista prossegue dentro de momentos.

O mesmo estado de necessidade e emergência económica que Maduro evocou para validar, junto do Supremo Tribunal, o decreto que lhe concede poderes extraordinários de governação, foi novamente apontado como o motivo para uma suspensão temporária de subsídios e congelamento de preços responsáveis pelo desequilíbrio orçamental que o Governo precisa agora de corrigir.

Numa longa sessão de explicações ao país, que durou quase cinco horas em directo na televisão, o Presidente justificou as reformas: a desvalorização da moeda; a revisão dos preços dos produtos regulados, incluindo da electricidade; e, pela primeira vez em 17 anos, a subida dos combustíveis. “Confrontados com uma inflação caótica, que vem sendo induzida de forma criminosa há vários anos, fomos forçados a usar todo o poder do Estado para controlar e regular os mercados”, explicou, recorrendo a dados oficiais que o regime há muito tinha deixado de divulgar publicamente: em 2015, a economia contraiu-se 5,7%, e a taxa de inflação disparou para os 180,9%.

O retrato do caos económico não terá surpreendido os venezuelanos, nem as culpas pela situação, que Maduro continua a atribuir à oposição de direita, aos empresários e agentes do sector privado, nacionais e estrangeiros – para o Presidente é a “guerra económica” e não o “modelo chavista”, que está a sabotar a economia venezuelana. Mas ninguém esperava estas medidas deste Presidente, em particular o “ajuste draconiano e radical” do preço da gasolina: a multiplicação por 60 do valor pago na bomba – da noite para o dia – deixou o país atordoado.

Ainda a mais barata
O choque foi difícil de disfarçar, até para os apoiantes do Governo: essa foi a decisão que o seu herói revolucionário Hugo Chávez esconjurou eternamente. “Continuaremos a ter a gasolina mais barata do mundo”, insistiu Nicolás Maduro, o que é verdade. O preço por litro, depois do aumento de 6000%, fixou-se nos 6 bolívares (85 cêntimos de euro), muito abaixo do preço real de mercado. Para abastecer a procura interna a preços irrisórios, o Governo gasta cerca de 12 mil milhões de euros por ano em subsídios à empresa petrolífera estatal PDVSA, que nem assim consegue cobrir os custos de produção (extracção, refinação, processamento e transporte).

Ainda assim, a corrida às bombas logo que a subida foi confirmada mostrou o tremendo impacto que a medida terá para as famílias, já obrigadas a suportar esperas horas nas filas dos supermercados e farmácias para comprar bens racionados ou a recorrer ao mercado negro. Os dados de 2015 avançados pelo banco central são reveladores da pressão a que foram sujeitos os venezuelanos: o preço do cabaz alimentar aumentou 315%, no vestuário a subida foi de 146%; os custos nos transportes cresceram 130%, na saúde 110%.

“Na situação em que nos encontramos, a gasolina barata era o nosso único benefício”, lamentou à Reuters Angel Pina, enquanto esperava para encher o depósito. “Se calhar este aumento devia ter sido feito há mais tempo. Mas a altura agora é má, sabemos lá quais vão ser as consequências”, observou. María Ina Gómez antecipou algumas: “Se sobe a gasolina, sobe tudo: os transportes, os alimentos, os salários que temos de pagar, tudo”, enumerou à BBC Mundo.

Para os analistas financeiros, as medidas de emergência de Maduro têm um impacto recessivo e exacerbarão as pressões inflacionárias sobre a depauperada economia venezuelana, sem corrigir significativamente as distorções e desequilíbrios. As previsões do FMI para 2016 colocam a taxa da inflação nos 720%; a consultora Eurasia projecta um aumento muito significativo do nível (já elevado) de escassez, e, em resultado, um agravamento do ambiente de tensão e instabilidade social e confrontação política.

Os analistas políticos destacam o simbolismo do momento: foi um cenário semelhante de reformas económicas e aumento dos preços dos combustíveis que levou o povo para a rua, em Fevereiro de 1989. Os motins, conhecidos como o Caracazo, foram o prelúdio da revolução bolivariana que levou Hugo Chávez ao poder.

Num raro momento de na longa emissão televisiva, Maduro penitenciou-se por ter de recorrer a medidas tão impopulares: “Tornou-se uma necessidade absoluta, assumo totalmente a responsabilidade”. “Não quero construir um novo modelo, mas não posso ignorar a emergência económica. Por isso preciso do vosso apoio”, declarou.

Dimensão desconhecida

“Com estas decisões, o mandatário venezuelano entra numa dimensão política desconhecida”, avaliava a BBC Mundo. O risco para Maduro é que as reformas não tragam os benefícios prometidos e resultem numa erosão ainda mais profunda da sua popularidade – especialistas ouvidos pela Bloomberg, a Reuters e o Wall Street Journal concordavam que as medidas apresentadas serão insuficientes para aliviar as dívidas interna e externa.

A maior parte das reformas de Maduro têm como objectivo a redução do défice que já ultrapassa os 20% do Produto Interno Bruto. Dependentes em 95% das receitas da venda de petróleo, as contas públicas ressentiram-se com o colapso do preço do crude nos mercados mundiais (em 2015, o petróleo desvalorizou-se 50%). Sem receitas suficientes para financiar os programas sociais, a importação de bens essenciais e o serviço da dívida, o Governo está a usar as suas significativas reservas em ouro – presumivelmente de 14 mil milhões de euros – para assegurar as suas obrigações internacionais.

Além da subida dos combustíveis, o Governo também decidiu intervir no sistema estatal de controlo de preços, revendo os montantes fixados para os mais de 100 “produtos regulados”, no sentido de os aproximar ao seu valor real de mercado. Esse exercício será feito já com um novo quadro cambial e uma moeda desvalorizada: desde que foi eleito, em 2013, Maduro criou três sistemas cambiais diferentes, mas mesmo assim o bolívar perdeu 98% do seu valor no mercado negro. A nova reestruturação do sistema de câmbio elimina uma das três taxas oficiais e converte outra numa taxa flutuante; na nova cotação oficial, um bolívar passa a valer dez cêntimos de dólar (em vez de seis cêntimos, ou seja, perde 37%). 

No entanto, Maduro também anunciou medidas com efeito orçamental oposto. Para “proteger os trabalhadores, gerar emprego e salvaguardar os salários”, o Presidente prometeu um aumento de 20% do salário mínimo e das pensões já a partir de Março – foi a 31ª subida do salário mínimo em 17 anos – e o reinvestimento directo das poupanças obtidas com anos programas sociais.

Que se vá Maduro!

A oposição não demorou a reagir ao discurso televisivo do Presidente, e à sua inesperada admissão da “magnitude do descalabro económico”, reforçando a sua convicção de que o povo deve ser chamado a decidir se Maduro está em condições de levar o mandato até ao fim. “O fim antecipado deste Governo é um imperativo”, considerou o governador de Miranda e adversário presidencial de Maduro, Henrique Capriles, que é um dos apologistas da convocação de um referendo revogatório por parte da Assembleia Nacional.

Esse é um passo que o novo presidente do Parlamento, Henry Ramos Allup, já disse estar preparado para tomar. A Constituição venezuelana prevê que a permanência no cargo de qualquer dirigente eleito possa ser referendada após o cumprimento de pelo menos três anos de mandato – um marco que Nicolás Maduro alcançará em Abril.

Sustentados nas avaliações negativas dos economistas e analistas financeiros sobre os resultados das reformas de Maduro, os parlamentares da oposição alegam que o país não pode correr o risco de continuar com o mesmo modelo económico e de desenvolvimento assente na redistribuição das receitas do petróleo e na estatização dos sectores produtivos. “Mas o Governo prefere que as pessoas morram de fome a reconhecer os seus erros”, criticou Ramos Allup.

No entanto, existem divergências sobre a melhor forma de proceder para responder à crise e apressar a saída de Nicolás Maduro: através de referendo, pela aprovação de uma emenda constitucional para encurtar o mandato, com a marcação de uma nova assembleia constituinte. Numa carta enviada da prisão, no dia em que cumpria dois anos de detenção, o líder do partido Vontade Popular, Leopoldo López, pediu aos diferentes integrantes da coligação de oposição que decidam rapidamente qual o melhor “mecanismo” para garantir uma mudança de Governo.

“Resolvam rapidamente se é por referendo revogatório, emenda constitucional, renúncia ou Constituinte. Seja qual for o mecanismo definido para a saída deste desastre, o nosso debate mais importante deve estar centrado na discussão de um grande acordo nacional que permita a entrada da Venezuela nos próximos cem anos”, considerou.

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