Em Bernieville, antes um terceiro partido do que Hillary Clinton

Os apoiantes de Bernie Sanders montaram um acampamento ao lado da convenção do Partido Democrata. De dia, ajudam-se uns aos outros com comida, bebida e boleias; de noite, soltam a raiva contra "o sistema".

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Josh e Amy brincam em Bernieville Alexandre Martins
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Os "residentes" de Bernieville querem mudar o sistema Alexandre Martins
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Os pins de apoio a Bernie Sanders Alexandre Martins
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Os campistas oferecem comida, água e boleia Alexandre Martins
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Os "residentes" de Bernieville querem mudar o sistema Alexandre Martins

Josh e Amy brincam na relva, mesmo à beira da estrada, ela a fazer aqueles rabiscos com lápis de cera que os pais acham sempre fantásticos, ele a andar de um lado para o outro a tentar fazer conversa com outra criança que atira o diablo ao ar com a concentração de um daqueles profissionais-não-façam-isto-em-casa.

Chegaram há uma semana ao Parque Franklin Delano Roosevelt, em Filadélfia, e de política nada percebem, apesar dos enormes crachás de Bernie Sanders que Josh traz ao peito, agarrados à camisa com vários tons de roxo, que combina com um par de calças verde e dois pés descalços. Fazem a vida numa aldeia improvisada, com tendas montadas pelos pais e outros adultos, eles sim activistas de corpo e alma que sentiram o Bern e estão aqui para protestar contra "o sistema" que lhes roubou a revolução e entregou a nomeação do Partido Democrata a Hillary Clinton, dizem.

Durante a semana da convenção, Josh, Amy, a aprendiz de malabarista e outras centenas de pessoas instalaram-se nesta aldeia temporária a que chamam Bernieville, uma espécie de capital de toda a confusão que vai na cabeça de quem acreditou até ao último momento que finalmente ia enviar para a Casa Branca alguém que representa os seus sonhos.

São quase todos jovens, porque os 30 são os novos 20 e etc. Uns sentem-se traídos pelo apoio de Sanders a Clinton, outros compreendem que a vida é assim, mas poucos têm estômago para votar na candidata do Partido Democrata em Novembro. Em vez disso, prometem manter o movimento vivo até que a nomeada os ouça a sério, e que prove ao longo dos próximo três meses que também ela ouviu Bernie Sanders. Se isso não acontecer, a maioria promete votar em Jill Stein, a candidata dos Verdes, e regressar a casa para ajudar a eleger todos os candidatos progressistas que encontrarem nas suas cidades e nos seus estados.

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Ninguém sabe se este vai ser o ano em que um terceiro partido consegue finalmente furar o sistema de dois partidos que tem servido os Estados Unidos quase desde o seu nascimento, mas poucos têm dúvidas de algo que pode baralhar as contas a quem se atreve a prever o futuro como numa sessão de tarologia: a sua geração, os famosos millennials, já não ligam à narrativa de que é preciso votar no menor de dois males.

Enquanto um dos habitantes de Bernieville pede ajuda para levar o gigantesco charro que se tornou numa imagem de marca dos protestos em Filadélfia até ao edifício da câmara municipal, 12 quilómetros a pé ao longo da Broad Street e de volta ao parque, Dylan Souza acaba de dar uma entrevista ao site The Young Turks e tem todo o gosto em falar com mais um jornalista.

"Ah, eu também sou português!", exclama Dylan, naquele sotaque tipicamente californiano que une todos os descentes de tetravós portugueses, italianos, irlandeses ou suecos. "O meu último nome é Souza e os antepassados do meu pai vieram daquelas ilhas ao largo de Portugal, não me lembro do nome. O meu pai não fala português, mas costumamos comer pão português que a minha avó faz, e que é absolutamente delicioso. É a melhor coisa deste planeta. O meu pai não liga à cultura portuguesa. Eu quero muito aprender algumas coisas, mas a minha mãe é irlandesa, por isso alimento mais o lado da bebida", diz, antes de disparar uma gargalhada.

Menor de dois males

Dylan não é daqueles que se sentem traídos por Bernie Sanders. Bem, pelo menos já não se sente traído, mas demorou algum tempo até digerir a decisão. "Quando ouvi a notícia de que o Bernie tinha recomendado o voto na Hillary fiquei desiludido, mas depois parei para pensar sobre tudo o que ele fez. Isto é como um jogo de xadrez e ele fez a jogada certa. É muito esperto, é brilhante, e tem lutado por nós desde os 18 anos. Tem 74 anos e é fantástico que ainda esteja a lutar por nós, ao inflitrar-se no Partido Democrata e a tentar mudá-lo por dentro."

Tal como quase todas as pessoas nesta Bernieville, Dylan despreza a ideia do menor dos dois males quando chegar o momento decisivo – ou Hillary Clinton ou Donald Trump. E, também como quase todas as pessoas nesta Bernieville, vai votar em Jill Stein, dos Verdes.

"Não vou votar na Hillary. Compreendo o ponto de vista do Bernie, mas não posso votar numa pessoa que fez batota nas primárias e devastou completamente o Bernie Sanders. Acho que essa narrativa de se não votarmos na Hillary estamos a votar no Trump é criada pelos media para nos assustar, e é muito infantil. As pessoas têm de perceber que na América quem quiser concorrer à Presidência deve ter a possibilidade de fazê-lo, independentemente do partido a que pertence. Este país não se baseia em partidos, baseia-se nas pessoas, e as vozes das pessoas têm de ser ouvidas", diz Dylan numa ideia muito repetida por aqui – durante grande parte da campanha, Bernie Sanders alimentou a ideia de que o sistema do Partido Democrata estava inclinado para o lado de Hillary Clinton, e os e-mails divulgados no final da semana passada pela organização WikiLeaks foi a bomba que rebentou com qualquer possibilidade de se pensar duas vezes na narrativa do menor dos dois males.

Visto a partir da Europa, pode ser difícil perceber a ideia de que um eleitor do Partido Democrata nas primárias pouco se importa com a perspectiva de uma Administração Trump, mas entre os mais fervorosos apoiantes de Bernie Sanders o desprezo e o ódio por Hillary Clinton grita mais alto do que uma actuação da cantora Céline Dion.

"O Donald Trump diz coisas loucas, mas a Hillary Clinton fez coisas loucas. Se o Donald quiser irritar os líderes dos outros países, presumo que esses líderes são suficientemente inteligentes e não vão julgar o povo americano, vão apenas olhar para o Donald Trump e ver que ele é um idiota. Prefiro ter um idiota como líder do que uma mente criminosa. Ele pode dizer o que quiser, mas não vai conseguir fazer nada por causa do Congresso."

Voto de protesto

As sondagens têm dado valores muito mais altos ao Partido Libertário e aos Verdes do que tem sido habitual em eleições passadas, à excepção de Ralph Nader em 2000. Nesse ano, o candidato dos Verdes foi acusado de dividir o Partido Democrata e de entregar a vitória a George Bush – e só conseguiu 2,7% do voto popular. Este ano, numas eleições muito mais divisivas, com milhares de apoiantes de Bernie Sanders a prometerem votar nos Verdes, ainda mais republicanos a contemplarem o voto no Partido Libertário, e muitos independentes divididos entre esses dois partidos, há quem acredite que tudo pode acontecer.

De passagem por Bernieville, e no espírito de paz e concórdia que aqui se vive durante o dia, que à noite tudo muda quando os delegados do Partido Democrata que apoiam Hillary Clinton são apupados e ofendidos ao entrarem para o pavilhão Wells Fargo, está um grupo de jovens, todas mulheres, que dizem não ter uma posição política: estão aqui para convencer as pessoas de que é preciso defender toda a vida, das guerras, dos ataques com drones, da pena de morte, mas também do aborto e da eutanásia.

Christina Healy, 24 anos, vive em Cleveland, no estado do Ohio, é estudante de Medicina e faz parte do grupo Pro-Life Future, que defende "uma ética consistente em defesa da vida". Apresenta-se como a mais liberal do grupo, apoiante de Bernie Sanders. Ainda assim, diz, não votou nele porque "ele apoia algumas formas de violência, como o aborto". Christina não tem candidato, sente-se entre a espada e a parede, e por isso o que ela fizer nas eleições também vai influenciar o resultado: "Nunca votaria em Hillary Clinton porque ela apoia guerras injustas, ataques com drones e é uma grande defensora do aborto. E nunca imaginaria votar em Donald Trump. Provavelmente vou fazer um voto de protesto e escrever o nome de outra pessoa no boletim."

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Bernieville é agora uma gigantesca cidade, com grupos de agricultores anarquistas que se organizam para ajudar os manifestantes a terem sempre água disponível e três refeições por dia, bebés a dormir em cima de mantas ao ar livre, Woodstock style, acérrimas opositoras do aborto e quase tudo entre os extremos. São os tais millennials, e enchem o peito quando dizem que estamos em 2016 e hoje as pessoas pensam pelas suas próprias cabeças – e isso passa por não quererem saber se Donald Trump vai ser o próximo Presidente dos Estados Unidos. Em primeiro lugar está o que dizem ser a sua consciência, e irritam-se um pouco sempre que lhes perguntam: "Então o que acham desta ideia do menor dos dois males?"

Com uma gigantesca cara de Bernie Sanders feita de cartão erguida bem alto, Molly Hankins, 31 anos, chega a Bernieville com um look mais apropriado para um daqueles eventos em que se paga para ver o pôr-do-sol do que para uma revolução. Veio de Los Angeles para apoiar Sanders e vai continuar a apoiá-lo, porque o que está em causa é um movimento. O início de algo maior, dizem por aqui.

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"O melhor que pode acontecer é que o Bernie Sanders expluda em milhões de pequenos Bernie Sanders. Nunca me envolvi na política e nestas eleições estou muito activa. Estou a aprender como concorrer nas listas do meu condado em Los Angeles. Não sei nada, mas vou aprender. Vou ficar ali naquelas reuniões chatas e ver uma data de tutoriais no YouTube sobre o processo, para aprender a influenciar a política a nível local."

Quanto a Donald Trump, Molly deixa uma nota de optimismo para quem teme uma vitória do magnata e antiga estrela da televisão: "As eleições presidenciais são um reality show. O Trump tem ideias simples para pessoas simples, mas acho que não acredita em muitas coisas que diz. Está apenas a pedir atenção."

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