E se perdemos a "nostalgia europeia"?

Podemos falar sobre herança cultural livre e até euforicamente, com a certeza de que perdida e fragmentada essa nostalgia muito pouco restará de nós dentro de nós e em nome do nosso futuro.

A Comissão Europeia tomou no passado dia 30 de Agosto a decisão de propor ao Parlamento Europeu e à Comissão Europeia que o ano de 2018 seja designado como Ano Europeu da Herança Cultural. Só espero que, com o entusiasmo da ideia, não tenham enviado também a proposta à Grã-Bretanha que, em boa verdade, por via do malfadado “Brexit”, já está isenta de opinar sobre matérias desta índole, por não saber verdadeiramente como e quando sai e quem continua por ela a tomar decisões em Bruxelas, já com muito minguada legitimidade para o fazer. São situações como esta que acentuam a urgência de que se tome uma decisão clara e definitiva sobre a matéria para não passarmos o resto dos nossos dias a tentar saber ao certo quem é quem em matéria de decisões europeias. Quem sai, sai e quem fica, fica. A ambiguidade que confunde e mistifica nunca serviu ninguém, por maior que seja a cautela de Bruxelas na gestão deste dossiê que ainda ninguém sabe como e quando se encerra com a pedra pesada que tem o valor de um parágrafo inequívoco.

Lembrou-se a Comissão Europeia de que os sítios arqueológicos, as clássicas obras arquitectónicas, os castelos e as tradições folclóricas constituem, globalmente, o coração da memória colectiva e da identidade dos cidadãos europeus, seja ela o que for e tenha a legitimidade que tiver. É inequivocamente urgente recuperar monumentos, delimitar áreas e criar estratégias de promoção e atracção fidelizadora que chamem públicos e criem riqueza e coesão social e cultural.

Numa altura em que equipamentos fundamentais que sustentam e fortalecem essa identidade cultural estão a ser destruídos ou esquecidos (bastando lembrar o que o autoproclamado Estado Islâmico fez à cidade de Palmira) fazem particular sentido as palavras do comissário Tibor Navracsics sobre o assunto: “A nossa herança cultural é mais do que a memória do nosso passado; é a chave do nosso futuro. O Ano Europeu da Herança Cultural constitui uma oportunidade para reforçar a vigilância em relação à importância económica e cultural dessa herança e para promover a a excelência europeia neste sector. Apelo ao Parlamento Europeu e à Comissão Europeia no sentido de que suportem a nossa proposta”.

É oportuno recordar o valor cultural do sector e desta aposta estratégica recordando que que mais de 300 mil pessoas trabalham directamente na Europa em equipamentos e acções relacionados com a herança cultural e que 7,8 milhões de postos de trabalho estão indirectamente associados a esta forma de riqueza, designadamente nos sectores do turismo, dos transportes, dos serviços de tradução, da segurança e da habitação. Convém também recordar e sublinhar que em 2011 a herança cultural criou 8,1 mil milhões de euros de receita em França nos museus, nos sítios históricos e também nas bibliotecas, arquivos e locais de venda associados à promoção destes bens ligados à memória colectiva.

Há uma Europa criativa que se deve preocupar com o projecto e com o modelo que pode garantir a sua concretização, ao mesmo tempo que deve determinar até que ponto a partilha desta memória transversal, rica e mobilizadora é capaz de ser um verdadeiro factor de convergência, de diálogo, de apaziguamento e de eliminação de tensões e querelas. Como bem recordou o sociólogo e filósofo Sigmunt Bauman, a Europa descobriu todos os continentes, mas nenhum continente descobriu a Europa, o que ajuda a explicar a vulnerabilidade deste projecto e da intenção humanista que está na sua base. Abordar este assunto não é um mero e fugaz expediente argumentativo. O que enfraquece a Europa é também o facto de o muito que vale colectivamente ser pouco valorizado pelo conjunto das nações e de não contribuir para o reforço de uma cidadania empenhada, atenta e combativa, sobretudo numa época de frágil ou inexistente solidariedade que leva a excluir quem tem tanta ou mais História do que nós, desde o início da civilização e do uso da escrita. Por aí, há seguramente uma Europa que deve crescer e aparecer para tentar perceber melhor o mundo. Se tal acontecer, talvez Bruxelas e os seus dinâmicos eurocratas percam a arrogância que tantas vezes os caracteriza nas melhores como nas piores situações. E, na verdade, ou este quadro se transforma ou a Europa pode começar, também por esta via e com o peso da sua herança cultural, a ter os dias contados.

Tem razão de sobra Milan Kundera quando escreve: “Na Idade Média, a unidade europeia repousava na religião comum. Nos tempos modernos, ela cedeu o lugar à cultura (à criação cultural) que se tornou na realização dos valores supremos pelos quais os Europeus se reconhecem, se definem, se identificam. Ora, hoje, a cultura cede por sua vez o lugar. Mas a quem e a quê? Qual é o domínio onde se realizam valores supremos susceptíveis de unir a Europa?”. E acrescenta: “A única coisa que julgo saber é que a cultura já cedeu o seu lugar. Assim, a imagem da identidade europeia afasta-se do passado. Europeu: aquele que tem nostalgia da Europa”.

Quem perder essa nostalgia deixa que se diluam os laços profundos que nos prendem a uma memória, a um compromisso a uma prioridade estratégica. Podemos falar sobre herança cultural livre e até euforicamente, com a certeza de que perdida e fragmentada essa nostalgia muito pouco restará de nós dentro de nós e em nome do nosso futuro.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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