E a vida continua

Nunca é de mais sublinhar que, do que sabemos até hoje, as uniões monetárias quando se constituem são para a vida.

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1. Enquanto o terrível (e perturbador) desastre aéreo nos Alpes franceses dominava quase exclusivamente as atenções, a Grécia ainda não faliu, a Arábia Saudita iniciou uma guerra no Iémen, um general de nome desconhecido anunciou que iria tomar conta do caos na Líbia e até as ondas de choque das eleições departamentais francesas, cuja segunda volta é hoje, abrandaram de intensidade.

Depois da visita de Alexis Tsipras a Angela Merkel na segunda-feira passada, o primeiro-ministro grego regressou a Atenas sem grande coisa na bagagem, apenas o compromisso de apresentar no Eurogrupo um plano mais detalhado das reformas que já prometeu fazer e que tinham esbarrado nas negociações técnicas entre a troika e o Governo grego em Atenas. Uma nova lista está já em Bruxelas sob escrutínio das três instituições. Tsipras já confessou que não tem dinheiro para cumprir os seus compromissos financeiros a partir de Abril. O tempo parece tão escasso para evitar o desastre que se torna cada vez mais difícil compreender a estratégia alemã. Ainda não se conhece a lista em pormenor, mas já se sabe que o Governo abdicou de outra das suas promessas, travar as privatizações, e vai vender a metade que resta do porto do Pireu provavelmente à China, que já comprou a primeira. O melhor que se pode esperar é que haja bom senso em Berlim para evitar o pior.

Nunca é de mais sublinhar que, do que sabemos até hoje, as uniões monetárias quando se constituem são para a vida. Ou seja, não são compatíveis com saídas a la carte, sob pena de deixarem de ser uniões monetárias. É por isso que o Tratado não as prevê. E é também por isso que um só precedente abalaria os fundamentos da moeda europeia. Faltam ainda à zona euro os instrumentos políticos de uma verdadeira união monetária, mesmo que a união bancária seja um grande avanço e o Mecanismo Europeu de Estabilidade ajude a enfrentar choques assimétricos que possam ocorrer no futuro. Mas o elo fraco da moeda única está e continuará a estar na ausência de um orçamento europeu que funcione como mecanismo de transferência de recursos quando esses choques se concretizem. A ideia já estava timidamente contemplada no documento preparado pelo anterior presidente do Conselho Europeu, Hermen von Rompuy, em 2013, sobre a nova arquitectura do euro, mas que Merkel enviou para a gaveta. Além disso, Berlim está a gerir o dossier grego da forma como acha que o euro deve ser gerido: pelos governos (no caso, pelo Eurogrupo) e não pela Comissão. Esta semana será crucial para verificar se é possível uma solução com pés para andar.

2. Entretanto, a Arábia Saudita invadiu o Iémen para travar a ofensiva dos huthis, uma facção xiita que já ocupou a capital iemenita e que se aproximava de Aden, um porto fundamental para a rota do petróleo. A decisão saudita veio sublinhar a traço muito grosso a tempestade que atinge o Médio Oriente e que tem no seu centro o conflito entre xiitas (Irão) e sunitas (Arábia Saudita) pela preponderância regional. A intervenção de Riade seria praticamente inevitável, dizem muitos analistas, numa altura em que as negociações dos EUA com o Irão se aproximam do fim da primeira fase (espera-se fumo branco em Lausanne no dia 31 de Março), fortalecendo a posição iraniana e abrindo as portas ao fim das sanções que têm massacrado a sua economia. Foi a guerra no Iraque que deu oportunidade a Teerão para fortalecer o seu domínio regional – uma das consequências que Bush não previu. A influência iraniana estende-se hoje do Iraque à Faixa de Gaza, do Líbano à Síria e, agora, ao Iémen. Riade não poderia tolerar mais uma derrota. Conseguiu uma aliança com oito países árabes, incluindo o Egipto, Jordânia, Marrocos. A Turquia apoia discretamente, sendo ela própria o terceiro país com ambições hegemónicas regionais. A monarquia saudita vai, provavelmente, obter da Liga Árabe a criação de uma força militar para intervir nestas circunstâncias. Escreve o Monde que a Arábia Saudita “fez da sua intervenção no Iémen o símbolo do seu regresso face ao hegemonismo iraniano”.

Obama quer estabelecer um novo e muito difícil equilíbrio regional, apoiando-se em quatro pilares: Turquia, Irão, Arábia Saudita e Israel. Tarefa difícil. A questão essencial é o acordo com o Irão, que afastará o pesadelo de uma corrida à bomba nuclear. Obama estendeu a mão a Teerão (cuja reivindicação central foi sempre negociar directamente com os Estados Unidos) e aproveitou os moderados. A evolução das circunstâncias regionais tornou-se num forte incentivo para um acordo. A entrada em cena do Estado Islâmico tornou-se numa terrível ameaça comum, que não respeita fronteiras (quer reconstituir o califado) e que elevou o terror ao seu estado mais puro. Os EUA e os aliados europeus estão a bombardeá-los constantemente, tentando travar a sua expansão regional. Na frente interna, o Presidente enfrenta um vasto sector republicano cujo objectivo é torpedear a sua estratégia, não hesitando em defender para o Irão aquilo que John McCain defendeu na campanha presidencial de 2008: “bombe, bombe, bombe”. Os neocons de Bush acreditavam que democratizar, nem que fosse à força, o Médio Oriente era a melhor estratégia de segurança da América. Falharam redondamente.

Se restassem dúvidas sobre a democratização, as Primaveras Árabes ajudaram a desfazê-las. Tirando o caso da Tunísia (agora sujeita à prova do terrorismo selectivo e extremamente perigoso do Estado Islâmico), a mesma história de sempre aconteceu: o confronto entre militares (e ditadores) e  islamistas radicais voltou a esmagar as forças políticas democráticas, que rapidamente desapareceram do mapa. O Egipto é o caso paradigmático. Na semana passada, mais um homem fardado apareceu nos jornais para prometer impor a ordem no caos da Líbia. A Síria transformou-se numa catástrofe humana, prolongando o poder do Presidente Assad para lá de qualquer previsão. A única certeza é que o Médio Oriente continuará a ser um barril de pólvora, mesmo que sem bomba nuclear, o que já não é nada mau. A Europa, que desempenhou bem o seu papel ao lado dos EUA nas negociações com o Irão, tem de pensar a sério na sua segurança energética.

3. Hoje, a segunda volta das eleições francesas não deve trazer grandes novidades. O primeiro impacto já foi digerido. A vitória da UMP será confirmada. A derrota dos socialistas também. O escrutínio uninominal a duas voltas dificulta a vida à Frente Nacional, mas os ganhos em relação ao passado serão evidentes. A França vai ter de se habituar ao tripartidarismo, absolutamente contrário à sua cultura política. Antes de chegar a Matignon, Manuel Valls disse uma frase corajosa e profundamente verdadeira, que cito de memória: A Frente Nacional compreende muitos dos problemas dos franceses, o problema é que tem para eles as soluções erradas. O seu maior problema é que esta ideia nunca penetrará nas fileiras de parte do seu partido, agarrado a velhos dogmas que já não têm nada a ver com a realidade, fechado numa torre de marfim onde a realidade não entra, alimentando-se em pequenas rivalidades palacianas e incapazes de alguma vez enfrentar a FN no terreno onde encontra o seu apoio crescente. Esse é o maior problema de Valls. Não apenas para cumprir as exigências europeias (que, para a França, não são assim tão exigentes), mas para adaptar a economia francesa à realidade da economia global. Ele é a última cartada de Hollande. Se falhar, o Presidente falhará também.

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