Do tempo do café-com-leite

A lição para a Europa é a seguinte: com o fim do motor franco-alemão acabará a nossa política “croissant-com-salsicha”.

Vamos voltar ao Brasil. Na última crónica escrevi sobre os paralelismos entre Brasil e EUA; não é muito conhecido, porém (ou não é muito conhecido deste lado do Atlântico), que houve um tempo em que a política brasileira era mais parecida com um modelo típico da União Europeia.

Era no tempo do café-com-leite. Os dois estados mais poderosos dominavam entre si a política, como na UE do motor franco-alemão. Acontece que esses dois estados eram São Paulo, grande produtor de café, e Minas Gerais, terra de grande produção de laticínios, e por isso os imaginativos brasileiros chamaram a esta fase do fim da República Velha (1890-1930) a “política do café-com-leite. Se na Europa tivéssemos a mesma imaginação, em vez de “motor franco-alemão” teríamos a “política croissant-com-salsicha” — e tão indigesta quanto essa combinação.

Na “política café-com-leite” o Presidente da República era eleito indiretamente no Congresso Nacional. Os deputados não tinham margem de manobra para a liberdade de voto, e bastava ao Partido Republicano Paulista fazer um acordo com o Partido Republicano Mineiro para que o presidente eleito fosse uma vez de um desses estados, e outra vez do outro. Os dois partidos designavam em conjunto o candidato, e o arranjo lá foi durando, impávido e frustrante.

Acontece que um dia se rompeu o equilíbrio entre esses dois estados, por uma razão simples: um deles ficou habituado a ganhar sempre. São Paulo tinha o presidente Washington Luís, e este decidiu apoiar para a presidência outro paulista, Júlio Prestes. A quebra do “pacto de revezamento” abriu uma janela de oportunidade para um político da periferia do país. Esse homem era Getúlio Vargas, que vinha de uma cidade na fronteira com a Argentina, São Borja, e que liderou a revolução que a partir de 1930 pôs fim à política do café-com-leite.

Getúlio tomou o poder em ditadura (esmagando a Revolução Constitucionalista no estado de São Paulo, em 1932), e fundou o Estado Novo brasileiro que durou até 1945; voltaria a governar após a IIª Guerra Mundial, de 1951 até ao seu suicídio em 1954. Na segunda metade dos anos 1950 e primeira de 1960, a democracia baseada em partidos regressaria ao Brasil. Com um detalhe: as eleições para Presidente e Vice-Presidente eram separadas, e poderia acontecer que o lugar do vice fosse ocupado por um político de um partido diferente, e até oposto, ao do presidente. Isso ocorreu com na eleição de 1960, em que o conservador Jânio Quadros foi eleito presidente e o trabalhista João Goulart seu vice. A demissão do presidente, em 1961, viria a ser um dos pretextos para o golpe militar que derrubou Goulart (por acaso nascido mesma cidade de fronteira de Getúlio) em 1964.

Os partidos brasileiros foram então extintos, e só renasceriam décadas depois, o que ajuda a explicar a indefinição ideológica de muitos deles. Os vices continuam a ter muita importância e por vezes mais votos do que os candidatos presidenciais (será provavelmente o caso de Marina Silva). E a política brasileira continua confusa e fascinante.

A lição para a Europa é a seguinte: com o fim do motor franco-alemão acabará a nossa política “croissant-com-salsicha”. Já vai tarde.

Texto corrigido às 16h46 São Paulo grande produtor de café e não leite

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