Divórcios e segundos casamentos continuam a apaixonar e inquietar o Vaticano

Acesso ao sacramento da comunhão marcou muitas das intervenções no recente Consistório.

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O Papa Francisco quer mais foco na parte pastoral para prevenir pedofilia na Igreja Stefano Rellandini/Reuters

O Papa Francisco pediu que os cardeais ajudassem a reencontrar os valores da família e ao mesmo tempo quer discutir as posições do Vaticano em questões como a homossexualidade, a concepção ou o divórcio. O tema da separação entre católicos mostrou, numa reunião com 150 cardeais, que continua a apaixonar e a inquietar os representantes da Igreja – estando longe de gerar consensos.

O tema do divórcio e dos segundos casamentos entre católicos foi dos que mais tempo ocuparam durante o recente encontro entre o Papa Francisco com os 150 cardeais e que terminou no fim-de-semana. A questão passa, sobretudo, por admitir que estes católicos recuperem o direito a comungar, mas mesmo assim há posições contrárias e crispação, escreve a AFP.

De acordo com a Igreja Católica, uma pessoa que tenha recebido o sacramento do matrimónio não poderá comungar caso se volte a casar após o divórcio. Vários católicos nestas circunstâncias têm apelado a que a regra mude, sobretudo nos países ocidentais. E contam até com o apoio de alguns bispos e teólogos que têm defendido que em nome da “misericórdia” proclamada pelo Papa esse seria o caminho a seguir. Porém, há quem insista que a frase “o que Deus uniu o homem jamais poderá separar” é mesmo para ser seguida à risca.

Do lado da opinião pública, as posições são quase maioritariamente favoráveis à mudança. Uma sondagem realizada pela Univision em 12 países de maioria católica concluiu que 75% dos inquiridos na Europa estão em desacordo com esta posição da Igreja, 67% na América-Latina, 59% na América do Norte e apenas 19% em África.

Até agora uma das possibilidades estava na anulação do casamento por parte do Vaticano, mas o processo além de ser muito raro é também demorado. Mesmo os católicos nem sempre estavam de acordo com a mesma, até porque em muitos casos tinham nascido filhos da primeira relação. Outra solução passa pela que é utilizada pela Igreja ortodoxa e que prevê a possibilidade de as pessoas se voltarem a casar e a comungar após um período de reflexão, ainda que a segunda união não seja reconhecida como um sacramento.

Para Henri Tincq, especialista em assuntos do Vaticano, a questão teologicamente é muito complexa. “Assim como é sempre válido o baptismo recebido na infância mesmo para quem não pratica, ou o sacerdócio para um homem que rompe com o seu compromisso sacerdotal e se casa pelo civil, um sacramento dado por Deus nunca pode ser retirado”, diz no site Slate.fr.

De acordo o cardeal Philippe Barbarin a questão é de tal forma polémica que ocupou 80 a 90% das 70 intervenções dos cardeais na semana passada durante o Consistório extraordinário convocado pelo Papa. Este Consistório foi a primeira grande cimeira da Igreja católica, desde o conclave que elegeu Francisco a 13 de Março de 2013 depois da resignação de Bento XVI. A família vai ser também o centro das atenções do Vaticano no Sínodo dos bispos marcado para 5 a 19 de Outubro e que conta já com um questionário de 38 perguntas feito nas comunidades católicas sobre as questões ligadas à família e ao casamento. Está outro encontro marcado para 2015, pelo que até lá não é previsível nenhuma decisão final.

Sinais de abertura do Papa
Antes do encontro, o Papa tinha já defendido que a Igreja, sem abrir mão dos seus ensinamentos, deve ter uma atitude “inteligente” em relação a quem não vive segundo as suas normas. “Célula fundamental da sociedade”, a família “está hoje desvalorizada e é maltratada”, disse o Papa Francisco, na quinta-feira. Mas, acrescentou, se a missão da Igreja “é dar a conhecer o plano magnífico de Deus para a família”, tem igualmente de apoiar os casais “nas muitas dificuldades” que enfrentam, praticando "uma pastoral inteligente, corajosa e cheia de amor”.

O Papa tinha já dado um sinal no sentido do desejo de abertura quando convidou o cardeal Walter Kasper para proferir a reflexão que serviu de mote ao encontro dos cardeais. O alemão há muito que defende que os divorciados que voltam a casar não devem ser excluídos dos sacramentos, incluindo da comunhão – uma das mudanças mais esperadas do Sínodo sobre os “Desafios pastorais da família no contexto da evangelização”.

Prova de que a questão não é consensual, notou-se no encontro uma divisão geográfica, com os cardeais da Europa a serem os mais favoráveis à mudança e os de África os maiores opositores – em linha com a sondagem. Os cardeais africanos estão antes preocupados com outras questões culturais, como os poligâmicos por tradição ancestral serem autorizados a comungar. Do lado da Índia a principal questão referida foi o dote a pagar por ocasião dos casamentos.

Na segunda-feira, o cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller, da Congregação pela Doutrina da Fé, defendeu que não se podem “focar em permanência” nesta questão da comunhão e sublinhou, pelo contrário, que a Igreja deveria caminhar no sentido de aprofundar a doutrina e de dar preparações maiores para o casamento quando “muitos pensam que o matrimónio é apenas uma festa na Igreja”.

Recentemente o cardeal das Honduras Óscar Andrés Rodríguez Maradiaga, membro do chamado G8 de conselheiros do Papa, tinha já recomendado que o cardeal Müller fosse “mais flexível” na sua abordagem. As palavras surgiram depois de a diocese alemã de Friburgo ter autorizado no Outono alguns católicos divorciados que voltaram a casar a poder comungar – o que foi severamente condenado pelo Vaticano.

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