Depois de perder e destruir a Síria, Assad reelege-se Presidente

A Síria que era já não volta a ser e milhões fugiram sem saber quando poderão sonhar com o regresso. Os mortos são pelo menos 160 mil, os desaparecidos dezenas de milhares. Mas esta terça-feira, há eleições convocadas pelo Presidente e urnas abertas em parte do país.

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Bashar al-Assad e a mulher, Asma, votaram em Maliki Facebook Presidência da Síria
A estranha normalidade de uma rua de Damasco num país em guerra
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A estranha normalidade de uma rua de Damasco num país em guerra Khaled al-Hariri/Reuters

Não são umas eleições normais – houve várias eleições pouco normais no Médio Oriente, do Iraque ao Egipto, nos últimos anos. Mas estas são especialmente estranhas. Afinal, foi por causa delas que o mediador internacional para a Síria, Lakhdar Brahimi, mandatado pela ONU e pela Liga Árabe, atirou a toalha, pediu desculpas aos sírios e se demitiu, no mês passado. Dois anos antes, aceitara uma missão impossível. Mas só desistiu quando Bashar al-Assad marcou presidenciais para esta terça-feira, confirmando que é candidato.

A Síria já é uma impossibilidade, estas presidenciais só o sublinham, de uma forma tão evidente que começam a faltar palavras para falar de presente e futuro.

Paradoxos que fazem o sentido: a semana passada, milhares e milhares de refugiados sírios no Líbano fizeram fila para votar, a afluência foi tanta que a embaixada alargou a votação a dois dias; no domingo, no mesmo Líbano, centenas de refugiados sírios manifestaram-se contra as eleições, agitando bandeiras onde se lia “Votar no homem que matou 200 mil sírios!” ou cartazes onde escreveram “A nossa revolução tinha por objectivo derrubar um regime sectário e autoritário. Como é que alguém pode esperar que votemos para o apoiar?”.

O Centro Árabe para a Investigação e os Estudos Políticos deu-se ao trabalho de fazer uma sondagem junto dos refugiados na Turquia, na Jordânia e no Líbano: 78% dos inquiridos consideram as eleições “ilegítimas”, 75% dizem que as presidenciais “não representam o povo sírio”.

Três anos e três meses depois dos primeiros protestos pacíficos, iniciados em Deraa, cidade onde a polícia prendeu e torturou um grupo de adolescentes que escreveu na parede da escola “o povo quer a queda do regime”, Assad e as suas forças (regulares e milícias, apoiadas pelo Hezbollah libanês, por unidades de elite iranianas e por combatentes xiitas vindos do Iraque), controlam 40% do território habitado da Síria, onde perto de 60% da população estará.

Nas zonas controladas pelos rebeldes não haverá eleições; entre os sírios que puderam fugir para o estrangeiro, houve países que autorizaram a abertura das urnas (Líbano ou Jordânia) e outros que recusaram (França, Alemanha, Bélgica ou Emirados Árabes Unidos). O Governo diz que são 15 milhões os sírios que poderão votar – é um número difícil de engolir; dos 22 milhões que estariam no país no início de 2011, pelo menos 160 mil morreram, dezenas de milhares estão desaparecidos e quase nove milhões são deslocados ou refugiados.

A última das estratégias do regime tem funcionado e terá contribuído para que parte dos deslocados internos esteja agora no país que Assad reclama. Em cidades como Hama, Homs, partes de Aleppo, partes de Damasco e dos seus arredores rurais, cercos de meses acompanhados de brutais campanhas de bombardeamentos vergaram os sírios pela fome – comida foi trocada por submissão. Documentos da ONU revelados em Março descreviam “o enorme movimento de sírios” que estavam a abandonar as zonas da oposição.

Onde não sobra nada
Em Alepo, por exemplo, a capital do Norte, em tempos a maior e mais vibrante das cidades do país, as bombas mataram 2000 pessoas, incluindo centenas de crianças, desde o início do ano. As dezenas de barris carregados com explosivos que caíram quase todos os dias não se limitaram a matar pessoas, tiraram tudo aos sobreviventes: na metade de Alepo do regime há água e comida e até electricidade; no Leste, onde a oposição está, falta tudo e 60% dos edifícios foram destruídos nos últimos meses.

Entretanto, o Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU interroga-se sobre se deve continuar com as distribuições de ajuda. Toda a que chega aos sírios passa pelas mãos de Assad e acaba, assim, por contribuir para o legitimar. Entretanto, ONG com a Mercy Corps abandonam Damasco porque o regime as proíbe de fazer chegar assistência aos territórios que não controla. Para esta organização, fez mais sentido deixar a capital e permanecer em Alepo, contra a vontade de Assad, onde consegue ajudar 1,7 milhões de sírios com a farinha que faz chegar às padarias, mais os cobertores, a água e os produtos de higiene que distribui.

Os paradoxos são muitos. Nos últimos dias, o Presidente dos EUA, Barack Obama, decidiu aumentar o apoio aos grupos rebeldes e os Estados Unidos descreveram as presidenciais como “farsa” ou “fantochada”. Ao mesmo tempo, responsáveis da Casa Branca admitem que Assad não sairá do seu palácio tão depressa. Já ninguém se lembra dos meses de 2011 e 2012 em que Obama e os líderes europeus repetiam várias vezes por semana que “Assad está acabado” e só lhe resta “partir”.

Ou do ataque com gás sarin de Agosto do ano passado, quando em poucas horas morreram 1400 pessoas, 400 delas crianças, e Washington prometeu que “ultrapassada a linha vermelha” do recurso a armas químicas nada seria igual daí em diante.

Todos falharam
Os dias continuam a correr, uns a seguir aos outros, os sírios ficam mais cansados a cada dia que passa e nada nem ninguém já os convence de que melhores dias virão. Na sexta-feira, o Papa Francisco afirmou que a Síria é vítima “da mundialização da indiferença”. É das poucas frases sobre a Síria que parecem fazer sentido.

Esta terça-feira, 9000 assembleias de voto vão abrir na Síria e vai-se votar das 7h às 19h. Assad não concorre sozinho e até há observadores enviados de países amigos (Irão, Rússia, Brasil, Coreia do Norte). Os outros dois candidatos são Maher Abdul-Hafiz Hajjar, de 46 anos, e Hassan bin Abdullah al-Nouri, de 54, ambos deputados desconhecidos.

O líder da oposição síria, Ahmed Jarba, pede aos sírios que “fiquem em casa” e recusem participar “na eleição de sangue desejada pelo regime”. Os jihadistas estrangeiros – que se aproveitaram do caos para tentar construir os seus próprios califados e controlam cidades e áreas do Norte – também fazem o que podem para espalhar a morte e o sangue.

Toda a gente falhou aos sírios, disse Brahimi quando se demitiu, toda a gente inclui a oposição. Anas Joudeh, vice-presidente do Building the Syrian State, um partido interno da oposição que boicota as eleições, repetiu essas mesmas palavras numa conversa recente com o Washington Post.

Joudeh lembra-se do dia em que Brahimi lhe disse que permaneceria no seu posto até que todas as soluções possíveis estivessem esgotadas. “O regime queria conduzir o país para este lugar e dizer a toda a gente, ‘vêem, não há outra solução’. E agora, muitas pessoas dizem que querem calma, que precisam de segurança e de pão precisam”, diz Joudeh. “Vamos renovar a nossa lealdade até à eternidade”, lê-se nos cartazes de campanha de Assad.

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