Malásia encontra mais 139 campas de migrantes mortos por traficantes

Polícia desvenda uma rede com dezenas de campos de tráfico humano. Os migrantes são sequestrados e torturados durante dias por centenas de dólares.

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Polícia transporta restos humanos encontrados nos campos. Algumas da localizações foram utilizadas pela última vez há poucas semanas Damir Sagolj / Reuters

Um dia depois de terem confirmado a existência de 30 valas comuns com dezenas de cadáveres em localidades próximas da fronteira com a Tailândia, as autoridades da Malásia anunciaram nesta segunda-feira que foram encontradas 139 valas de migrantes desde o início do mês, espalhadas por uma rede de dezenas de campos de tráfico humano até então desconhecidos.

Estes campos são tradicionalmente utilizados pelos traficantes como locais de sequestro e de extorsão de dinheiro. Os migrantes ficam detidos durante dias, por vezes meses. Durante este período são vítimas de violência, violações e em alguns casos é-lhes vedado o acesso a alimentação e a água. Os traficantes exigem resgates à família, que muitas vezes não tem dinheiro para o pagar. Por isso, muitos são executados, ou morrem de fome ou sede.

A polícia da Malásia disse nesta segunda-feira ter encontrado correntes em algumas das valas e avançou ainda que em vários campos foram encotrados indícios de prática de tortura. As autoridades não identificaram ainda as vítimas, mas há poucas dúvidas de que se tratam de muçulmanos rohingyas fugidos da Birmânia e de migrantes do Bangladesh. Também não se sabe o número de corpos recolhidos até ao momento, mas suspeita-se que esteja na ordem das centenas. Muitas destas 139 campas têm mais do que um cadáver.

Esta rede de localizações, entretanto abandonadas pelos traficantes, parece fazer parte do sistema de valas comuns encontradas no início do mês na Tailândia. Foram então desenterrados 26 corpos e, em resposta, as autoridades tailandesas lançaram uma operação de combate ao tráfico humano que acabou por precipitar a crise da migração marítima das últimas semanas. Os traficantes abandonaram várias rotas terrestres, incluindo muitas das que faziam a travessia pela fronteira tailandesa com a Malásia, a principal artéria de tráfico humano da região.

De acordo com a polícia malaia, foram até ao momento encontrados 28 campos de tráfico desde que começou a operação, no dia 11 de Maio. A maior parte das localizações está a cerca de 500 metros da fronteira com a Tailândia e há um campo a menos de 100 metros de uma das valas encontradas no início do mês. Da parte da Tailândia, as autoridades já disseram que não existem mais campos de tráfico naquela zona.

“Ficámos chocados com a crueldade”, declarou aos jornalistas o inspector-chefe da polícia, Khalid Abu Bakar, em Wang Kelian, a localidade fronteiriça onde foram encontrados os campos. “Estamos a trabalhar em conjunto com os nossos parceiros na Tailândia. Vamos encontrar as pessoas que fizeram isto.”

Em todo o caso, não foram ainda detidos quaisquer suspeitos ligados a esta rede de tráfico. O debate em torno da migração no Sudeste asiático tem-se concentrado sobretudo na inacção dos governos da região face às centenas de migrantes ainda à deriva nas suas costas, mas há também questões levantadas sobre a impunidade das redes de tráfico humano. As últimas contas das Nações Unidas dizem que há mais de 2000 migrantes ainda à deriva na região. Já mais de 3600 chegaram às costas da Malásia e Indonésia nas últimas duas semanas. 

O conluio do tráfico
Os habitantes e autoridades locais fazem muitas vezes parte das próprias redes de tráfico humano. Este é um dos factores que contribui para que os traficantes sejam raramente encontrados. Desde o início do ano, apenas 10 pessoas foram detidas por suspeita de tráfico humano na Malásia. Destes, dois são polícias. De acordo com a Reuters, mais de 50 agentes foram transferidos para o Sul do país por suspeitas de envolvimento nas redes de tráfico.

Estas redes estão a expandir-se. Principalmente porque o número de muçulmanos rohingyas que tentam a travessia vindos da Birmânia triplicou ao longo dos últimos três anos, consequência de um pico de violência étnica por parte da maioria budista em 2012. Segundo as Nações Unidas, o tráfico humano no Sudeste asiático terá rendido cerca de 250 milhões de dólares desde 2012.

Uma travessia custa entre 1600 e 2400 dólares. Uma quantia exorbitante para as populações empobrecidas da Birmânia e do Bangladesh. Mas o modelo de negócio passa ainda por extorquir mais dinheiro quando os migrantes estão já perto do seu destino. A BBC investigou as redes de tráfico no Sul da Tailândia ao longo de seis meses. Na semana passada partilhou a história de um sobrevivente com pouco mais de 10 anos, que viu mulheres serem repetidamente violadas e foi ele próprio vítima de agressões. Várias pessoas morreram e foram levadas em camiões.

“Eles trouxeram-nos para uma tenda”, disse o rapaz à BBC, “e obrigaram-nos a telefonar às nossas famílias e exigir-lhes dinheiro”. “Se não pudessem pagar, éramos espancados”, disse. De acordo com a emissora britânica, os resgates podem chegar aos 3000 dólares por pessoa. Mais do que a travessia.

Um dos campos encontrados ao longo deste mês pela polícia malia tinha capacidade para cerca de 300 pessoas. Um outro alojaria perto de uma centena. As autoridades encontraram vestígios de comida em algumas destas localidades, o que indica que foram utilizadas há poucas semanas.

“A comunidade está toda envolvida”, disse "Boy" à BBC, um jovem tailandês que vive numa localidade próxima da fronteira com a Malásia. “É por causa do dinheiro. Os traficantes contratam toda a gente. Contratam pessoas para vigiarem os campos e para transportarem comida para os rohingyas. Vão pelas casas todas a contratar gente.”

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