Depois da "sexta-feira negra", a Tunísia põe à prova a sua Primavera Árabe

Os três ataques representam desafios diferentes para os três países. No Kuwait está em risco uma relação pacífica entre xiitas e sunitas. Na Tunísia, a resposta autoritária pode pôr em causa a transição democrática do país.

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O número de mortos no ataque em Sousse, na Tunísia, subiu para 39 no sábado Kenzo Tribouillard / AFP

Tunísia, França e Kuwait foram atingidos no espaço de poucas horas por três atentados que, em comum, ergueram a bandeira do fundamentalismo islâmico. De resto, porém, passado um dia da “sexta-feira negra”, palavras do jornal francês Libération, há muito pouco em comum entre os três países e os desafios que agora os esperam.

Ao contrário do caso francês, as respostas da Tunísia e do Kuwait aos atentados de sexta-feira podem definir significativamente o futuro dos dois países. Na Tunísia, sobretudo, o único caso de sucesso democrático produzido pela Primavera Árabe, a retórica do Governo é a mais inflamada e há também sinais de que a resposta ao atentado possa seguir uma via mais autoritária.

As distinções entre os três casos começam com a escala dos ataques. E o ataque na Tunísia foi o mais sangrento. O número de vítimas mortais provocadas pelo ataque nas praias turísticas de Sousse, na Tunísia, subiu para 39 – incluindo uma cidadã portuguesa. Todos turistas, foram vítimas de Seifeddine Rezgui, um jovem de 23 anos, estudante universitário, radicalizado pelo autoproclamado Estado Islâmico e que, em seu nome, atacou “os antros de fornicação” de dois hotéis com uma metralhadora kalashnikov que escondera no seu guarda-sol. Na cidade do Kuwait, não resistiram dois de entre as várias dezenas de feridos provados pela explosão de um bombista suicida na mesquita xiita Iman Sadiq. Há agora 27 mortos, reivindicados também pelo Estado Islâmico, “apóstatas”, dizem os radicais sunitas. Em França, mantém-se a única vítima mortal, o patrão decapitado por Yassin Salhi, francês com raízes na África islâmica.

Na manhã de sábado, o primeiro-ministro da Tunísia, Habib Essid, “visivelmente exausto”, nas palavras da Associated Press, deu o tom do discurso governamental: “Estamos em guerra com o terrorismo, que representa um grave perigo para a unidade nacional neste período delicado que a nação atravessa.” Seguiram-se as ordens. Essid anunciou que seriam encerradas associações e cerca de 80 mesquitas com “ideias radicais” e que o exército de reserva será destacado para as zonas turísticas. “A luta contra o terrorismo é uma responsabilidade nacional”, disse ainda. Uma resposta, como escreve a revista norte-americana Foreign Policy, “demasiado reminiscente do antigo regime de Ben Ali”, historicamente repressivo contra as instituições sociais e religiosas.

Habib Essid foi mais longe do que em Março, quando um grupo com ligações à Al-Qaeda no Magrebe atacou um museu em Tunes e matou 22 pessoas, todos turistas também. O primeiro-ministro tunisino foi então criticado por não ter dado uma resposta forte ao ataque, tal como aconteceu quando dois políticos foram assassinados em 2013. Desde o ataque ao Museu Bardo, aliás, a Tunísia tem debatido duas propostas diferentes para aumentar a segurança no país. Uma, que facilita a detenção de suspeitos de terrorismo e prevê ajudas para as famílias das vítimas de atentados. A outra, é uma proposta para criminalizar o “denegrir” das Forças Armadas e que dá mais poder às autoridades.

É uma lembrança de que a transição democrática é ainda insegura. “Muitos dos interesses políticos e económicos do antigo regime mantêm-se intactos e as forças de segurança e judiciais mantêm-se, em larga medida, por reformar”, escreve Rory McCarthy no diário britânico The Guardian.

Do outro lado, porém, o inimigo é bastante claro. A Tunísia tem convivido directamente com os riscos da radicalização islâmica através da porosa fronteira com a Líbia, agora um estado ingovernável e disputado por uma miríade de grupos armados, sobretudo islamistas. A Tunísia é também o país que mais cidadãos nacionais tem no autoproclamado Estado Islâmico, o mesmo que reivindicou o ataque de sexta-feira. Três mil, segundo algumas estimativas.  

Kuwait a sarar
No Kuwait, os primeiros sinais parecem ser os de uma ferida nacional que será mais fácil de sarar do que na Tunísia. O país do Golfo Árabe é um dos poucos exemplos de um convívio pacífico entre muçulmanos sunitas e a minoria xiita. A explosão suicida reivindicada pelo Estado Islâmico numa mesquita xiita da capital, algo inédito na História do país, ameaçava desequilibrar esta harmonia social.

Mas a imagem foi outra. No sábado, milhares de sunitas e xiitas participaram numa grande marcha até à Grande Mesquita, na capital. “Muitos transportavam uma bandeira do Kuwait; outros, uma simples bandeira negra como sinal de luto”, escreve a Al-Jazira. Também no sábado, as autoridades do país detiveram o condutor do carro que transportou o bombista e tinha ainda um número indeterminado de pessoas sob interrogatório.  

Se, por um lado, o tom do discurso governamental é semelhante ao que se ouve na Tunísia, a resposta parece ser significativamente mais branda. Depois de uma reunião de emergência, o Governo lançou um comunicado em que prometeu “quaisquer medidas necessárias para erradicar esta corja”.

Mais tarde, porém, o porta-voz do Governo atenuou o discurso. À Al-Jazira, Mohammed al-Sabah disse que ataques desta natureza são muito difíceis de parar. “Investiremos em detectores de metais e mecanismos do género, mas mesmo isso pode ser ultrapassado com diferentes tipos de tecnologias”, declarou.

Perguntas em França
Em França, há ainda muitas perguntas sem resposta quanto ao ataque de Yassin Salhi, que decapitou o seu patrão (dono de uma pequena transportadora) e tentou incendiar uma fábrica de gás. Mas o atacante, que foi encontrado e detido no interior da fábrica, recusou-se a falar com a polícia durante os interrogatórios de sábado. A polícia pôs ainda em prisão preventiva a sua mulher, com quem Salhi tem três filhos, e a sua irmã.

Tenta-se saber, sobretudo, se Salhi actuou a mando de algum grupo fundamentalista islâmico. Até ao momento, sabe-se apenas que Salhi esteve em contacto com Frederic Salvi, um francês com ligações à Al-Qaeda “conhecido como um doutrinador violento e agressivo”, nas palavras de Le Monde. Sabe-se também que Yassin Salhi tirou uma fotografia com a cabeça decepada do seu patrão, ainda antes do ataque, e que a enviou para um contacto desconhecido. Ao final da tarde de sábado, a polícia procurava saber para quem fora enviada a fotografia. Um passo crucial para entender se Salhi actuou isoladamente ou não.

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