Depois da Escócia, a Catalunha, mas em pior

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Após o referendo escocês, “o reino mantém-se unido” e abrir-se-á um processo de redistribuição de poderes na Grã-Bretanha. O epicentro dos nacionalismos abandona a Escócia e volta a instalar-se na Catalunha. A derrota do “sim” priva os independentistas catalães de um exemplo galvanizador mas não altera a sua dinâmica política.

O referendo na Escócia tinha, aparentemente, implicações geopolíticas mais largas. O Reino Unido é uma união de nações. Também o nacionalismo escocês pouco tem a ver com o radicalismo da Catalunha de hoje. Mas, para lá das diferenças, o referendo escocês foi interpretado como um precedente, o que suscita uma inquietante interrogação: haverá algum país, do lado de cá da Mancha, que admita pôr à votação a unidade nacional? Nenhuma outra democracia europeia aceita o direito à secessão.

Semanas decisivas
Na Catalunha começou a contagem decrescente para a consulta de 9 de Novembro (9-N) sobre a independência. Consulta é um eufemismo para evitar o termo referendo. Na sexta-feira, o parlamento de Barcelona aprovou uma “lei das consultas populares não referendárias”. Visa garantir uma cobertura legal ao 9-N. Na consulta, seriam feitas duas perguntas: “Quer que a Catalunha se torne num Estado? E, se sim, “Quer que este Estado seja independente?” A consulta não teria efeito vinculativo mas para os nacionalistas seria um “acto transcendente”.

Estava previsto que o presidente catalão, Artur Mas, imediatamente assinasse um decreto convocando a consulta. Adiou a assinatura. Logo que o decreto seja publicado, o Governo de Madrid reunir-se-á de emergência e pedirá ao Tribunal Constitucional (TC) a sua anulação. Mal o TC admita o recurso do governo, a consulta fica suspensa.

Como responderão os nacionalistas? É aqui que as águas se separam. Artur Mas declarou que a consulta respeitará a legalidade. Os radicais exigem que o referendo se faça dentro ou fora da legalidade. Argumentam que se trata da vontade democrática dos catalães. Há uma segunda saída, a convocação de eleições legislativas antecipadas. Ambas suscitam problemas e dividem o campo nacionalista. A Convergência e União (CiU), de Artur Mas, e a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), de Oriol Junqueras, discordam sobre os passos a dar.

Fuga para a frente?
Um referendo ilegal teria uma baixa participação e daria uma “vitória de 90%” à independência. Fracturaria, social e politicamente, a Catalunha e partiria o campo nacionalista. Note-se que 45% dos catalães são a favor do respeito da legalidade na consulta e apenas 23% concordam com a violação da lei (inquérito de Metroscopia, realizado entre 2 e 4 deste mês). Quanto às opções, o bloco nacionalista mantém-se na casa dos 27%, os defensores do statu quo somam 19% e os defensores de uma negociação para alargamento da autonomia — a “terceira via” — são os mais numerosos: 42%.

A outra opção, que reúne largo apoio nos sectores radicais, seria a de eleições antecipadas. Todos as correntes nacionalistas se uniriam numa “candidatura de unidade soberanista”, sob o signo da declaração da independência. Com uma maioria de dois terços dos deputados, declarariam a secessão.

Trava-se neste momento uma luta surda pela hegemonia entre a CiU e a ERC. E também dentro da CiU, em que a União (democrata-cristã), de Durán Lleida, se opõe frontalmente à derrapagem independentista. De resto, a Convergência, de Mas, está debilitada pelo escândalo Pujol. Eleições antecipadas redundariam quase seguramente numa derrocada da CiU e na liquidação de Mas.

A cena é mais complexa porque não se esgota nos partidos. Com o êxito das mobilizações da Diada desde 2012, emergiram outros actores e outras sedes de iniciativa política, designadamente a Assembleia Nacional Catalã (ANC), uma força unitária basista que reúne quase todas as correntes nacionalistas e que excede os partidos. Assume-se como força tutelar da independência.

Artur Mas sabe que não será o “pai da independência” mas gostaria de ficar na História como o primeiro presidente da Generalitat (governo autónomo) a convocar um acto de autodeterminação catalã. A ANC tem outra ideia. Parece apostar numa espiral de radicalização, ultrapassando Mas e a CiU. A mobilização na rua ditaria as opções. A ANC fomenta uma espécie de “império dos sentimentos” e o “desejo de secessão”, visando tornar irreversível a ruptura com Madrid e reduzir os críticos ao estatuto de “maioria silenciosa”.

A “terceira via” exigiria um novo “pacto nacional”, uma reorganização negociada do modelo das Autonomias. Mas não terá qualquer viabilidade antes das eleições locais e legislativas espanholas de 2015. Mariano Rajoy e o Partido Popular beneficiam eleitoralmente com a intransigência perante Barcelona. Pedro Sánchez e o PSOE em crise aceitam um modelo federal mas não podem reconhecer a elevação do estatuto da Catalunha, reconhecendo-a como nação, sob risco de porem em causa o seu eleitorado em regiões como Valência ou a Andaluzia. 

“Rajoy sabe o que fazer”, avisa Enric Juliana, director-adjunto do La Vanguardia, de Barcelona. “O 9-N catalão converteu-se na data da sua grande prova de força”. Nesse dia, enviará uma mensagem a toda a sociedade espanhola: “A recuperação económica, mesmo que lenta, está em marcha. O governo garante a estabilidade. O governo é forte e não consente actos ilegais.”

O 9-N transformou-se numa ratoeira para a Catalunha. “A pulsão secessionista converteu-se num factor crónico de tensão e num grave elemento de desestabilização, mas sem possibilidade de dar o xeque-mate à ordem constitucional”, anota o historiador Joaquin Coll.

Das nações
Voltando ao problema inicial. Outro catalão, Lluis Bassets, director-adjunto do El País, comentou o referendo escocês numa perspectiva histórica: a Europa redescobriu, no fim da I Guerra Mundial, que as nações e as civilizações são mortais. Há duas décadas, mudaram fronteiras com a desagregação do império soviético e da Federação Jugoslava.

“Agora, experimentamos uma nova vaga, que chega ao coração europeu e toca as grandes nações históricas nascidas da Europa medieval. Não são estruturas artificiais nem impérios em desagregação, mas nações feitas e estruturadas, que atravessaram séculos de guerras e de turbulência sem modificar as suas fronteiras.”

O direito à secessão ou à autodeterminação já não é uma questão limitada a territórios coloniais: “Pode acontecer em pleno ocidente democrático e civilizado.” Conclui: “Uma vez demonstrada a sua possibilidade, ideias como esta expandem-se a uma velocidade viral.”

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