Democracia e eleições: “Isto é sempre confuso, vem do povo e está sempre a mudar”

A Tunísia vai a votos em Outubro e nem só por isso fez sentido dedicar o Fórum Lisboa de 2014 aos processos eleitorais. De fora, ficou o jihadismo e a juventude.

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Eleições e democracia não são sinónimos AFP

É possível organizar dois dias de debate entre o Norte (Europa) e o Sul (Mediterrâneo e África) sem quase dizer uma palavra sobre o Iraque a Síria? É. E se isso é estranho consegue ser, ao mesmo tempo, quase normal. Afinal, o Fórum Lisboa 2014 quis discutir “Os processos eleitorais e a consolidação democrática nos países do sul do Mediterrâneo” (a Tunísia, mas também Marrocos e o Egipto), um tema definido antes das decapitações na Síria e dos ataques dos Estados Unidos no Iraque, que tanto interessam aos países das duas margens.

Desde 1994, há dois dias por ano em que o Norte e o Sul se encontram em Lisboa e conversam. As portas do Centro Ismaelita abrem-se e vem gente do mundo mediterrânico e não só – houve conferencistas da América Latina; na plateia viram-se membros de ONG da Ucrânia. Esses dias chamam-se Fórum Lisboa, uma iniciativa do Centro Norte-Sul (CSN) do Conselho da Europa (CE). Por causa do tema e da realidade pós-revoltas árabes de 2011, houve uma estreia: a co-presidência da Tunísia num fórum que costuma ser definido a partir do Norte, onde o CSN e o CE têm sede.

Eleições e democracia não são sinónimos, podia ser assim o resumo destes debates, onde se falou de leis, partidos, financiamento e campanhas, participação (ou falta dela) das mulheres nos processos eleitorais, papel das organizações não-governamentais e dos media.

Afinal, o Líbano, “a mais antiga democracia do Médio Oriente”, como lembrou uma activistas desse país, está sem Presidente desde Maio, enquanto os egípcios já estão cansados de ir às urnas (entre referendos à Constituição e golpes de Estado), e a Tunísia, um país em transição desde o derrube de Ben Ali, em Janeiro de 2011, vai cumprir o calendário eleitoral estabelecido, com as segundas legislativas pós-ditadura já em Outubro.

Afinal, como lembrou o especialista em política tunisina Vincent Geisser, sempre houve “um respeito rigoroso do calendário eleitoral na Tunísia; mesmo para as manipularem, tanto Habib Bourguiba como Ben Ali realizavam sempre eleições”.

Nada disto significa que numa situação de transição para a democracia não seja fundamental organizar eleições e redigir um conjunto de leis e regulamentos transparentes que permitam aos cidadãos sentirem-se parte dos processos eleitorais, não espectadores de um filme numa língua estrangeira.

Leis boas e claras
Estas leis, notou Emanuele Giaufret, “devem ser redigidas de forma a não levantar suspeições e a serem bem integradas pelas instituições públicas que as vão pôr em prática [comissões eleitorais, por exemplo], devendo ser produto de um debate com as forças políticas mas também com a sociedade civil”. Só assim, defendeu o chefe da divisão da União Europeia para a Democracia e a Observação eleitoral, se obtém uma “reforma partilhada que responde às exigências e tem como consequência um resultado equilibrado”.

“Uma boa lei eleitoral não significa que haja uma boa eleição. É preciso ter uma boa lei eleitoral e depois esperar que a eleição também seja boa”, disse, no mesmo sentido, Gianni Buquicchio, presidente da Comissão de Veneza do Conselho da Europa. “Há códigos eleitorais com mais de 200 páginas... Como é que um eleitor, ou um observador, pode compreender tudo?”

Giaufret, como outros intervenientes, insistiu na necessidade de ver cada eleição como um ciclo – assim que uma termina, avaliam-se erros, verificam-se falhas e começa-se a preparar as seguintes. Outros sugeriram que tanto como observar eleições, as organizações internacionais deveriam permanecer nos países em transição e observar os períodos entre cada ida às urnas.

Aprender com o passado recente é o que a Tunísia tenta fazer depois das eleições de 2011, “as primeiras que foram um relativo sucesso em todo o mundo árabe”, sustentou Geisser, politólogo francês que viveu cinco anos na Tunísia, até ser expulso por Ben Ali.

Muito por fazer
Mas falta muito. Falta “um código de deontologia” para os políticos ou “uma verdadeira divisão de poderes que estabeleça que quem faz religião ou negócios não faz política e que quem faz política não se dedica ao resto”, defendeu Hassan Arfaoui, chefe de redacção do semanário tunisino Realités. “Na Tunísia, estamos muito longe disto, todos os domínios se misturam uns com os outros.”

Falta, por exemplo, decidir um novo modo de contagem de votos. “Estamos a ter este debate agora”, disse Mohamed Chafik Sarsar, presidente da Alta Autoridade Independente para as Eleições (ISIE), admitindo atrasos e falhas de uma comissão, aquela que dirige, “que os actores políticos consideram muito severa” e “os eleitores vêem como laxista”.

Sarsar, muito interpelado pela audiência, explicou o que é que a Tunísia está a fazer de diferente em relação a 2011, congratulou-se com a exigência de paridade absoluta e com o facto de as listas sem candidatos jovens não terem direito a subvenção pública. Mas também não negou que ainda há muito para acertar e errar no pós-revolução tunisino, ao mesmo tempo que disse acreditar que “os cidadãos vão saber estar à altura” das eleições de 26 de Outubro e que “os actores [políticos, observadores] vão ajudar a consolidar a confiança no processo eleitoral”.

Muito se discutiu sobre o papel dos media, com os jornalistas a serem descritos como “actores que é preciso ter do nosso lado” por mulheres que querem ser tratadas como iguais, tunisinos a lembrarem num debate sobre ética que ainda estão à espera do Livro Branco sobre práticas jornalísticas ou egípcios a lembrarem que num país com 45% de iliteracia não bastam os media, têm de ser as ONG a percorrer aldeias e vales para explicarem as leis às pessoas.

Mas foi da mesa redonda “Eleições e Media: influenciar ou informar?” que nasceu um dos debates mais animados, a suscitar expressões de espanto e riso entre quem assistia. Com conhecimento de causa, o experiente tunisino Mourad Teyeb supreendeu ao afirmar que “80% dos media não mudaram assim tanto desde a revolução e continuam a ser controlados pelas mesmas pessoas”. Ou que Suzy El Geneidy, do jornal Al-Ahram e da revista Al-Araby, explicou como no Egipto são os media estatais que tentam actualmente manter alguma imparcialidade face às autoridades.

Quem continua a controlar as organizações jornalísticas, diz Teyeb, são pessoas que “perderam as eleições de 2011”, o que sugere que os media pouco ou nada influenciam a decisão dos eleitores, pelo menos na Tunísia, onde “muitos dos que foram eleitos [para o Parlamento] eram desconhecidos do público”. Fédoua Tounassi, marroquina sem trabalho por não poder fazer o jornalismo que gostaria, partilhou que no seu país “os media não têm influência porque os marroquinos se desinteressaram completamente da política”.

Confusões e mudanças
A veterana egípcia Geneidy arrancou risos com o exemplo de um canal de televisão privado que contrata e despede pivots a cada mudança de regime: quando Hosni Mubarak caiu e no poder ficaram os generais, os pivots eram próximos dos militares; um dia depois de Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, ter sido eleito Presidente, já os espectadores tinham diante de si pivots íntimos dos islamistas. Claro que quando o Exército afastou Morsi, no Verão passado, voltaram os apoiantes do antigo regime.

A propósito do apoio, influência ou ingerência das democracias estabelecidas nos países em transição, Andrew Bradley, director do gabinete da UE do Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral, afirmou que “o apoio à democracia deve ser flexível e aceitar opiniões diferentes”. “Isto é sempre confuso, vem do povo e está sempre a mudar”, resumiu.

Mais alguns factos indesmentíveis: se olharmos para o Fórum Lisboa 2011 e para o deste ano os jovens (egípcios, argelinos, líbios e até tunisinos) parecem ter desaparecido. Um sírio a estudar em Portugal comentava com espanto ser a pessoa mais nova (na mesa ou na plateia), enquanto Haizam Amirah-Fernandez, investigador do Real Instituto Elcano, lembrava que a esmagadora maioria da população nos países do Sul tem menos de 30 anos e manifestava o desejo de ver mais jovens em futuras edições. 2014 é muito diferente de 2011.

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