Demasiadas perguntas sem resposta

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1. É difícil de dizer quem está mais desorientado, se a facção conservadora vitoriosa do "Brexit", se os governos europeus? É apenas mais uma demonstração da gravidade desta crise.

Do lado de lá, não foi preciso esperar 24 horas para perceber que Boris Johnson não tem ideia do que vai fazer, enquanto os britânicos que votaram pela saída não sabem ainda bem o que festejar. O antigo mayor de Londres e eterno rival do primeiro-ministro demissionário quer adiar o pedido formal de saída, invocando o Artigo 50º do Tratado de Lisboa, mas ainda não se sabe bem para quando. A vitória do "Brexit" já desencadeou uma série de efeitos colaterais, nomeadamente na Escócia, que lhe devem dar enormes dores de cabeça.Como escreve o Financial Times em editorial, “as promessas daqueles que fizeram campanha pela saída estão prestes a chocar com a realidade política”. É Boris quem vai liderar o partido e o governo? É Theresa May, silenciosa durante toda a campanha e mais próxima de Cameron?

A desorientação não está só desse lado. O impacte atingiu em cheio os trabalhistas e o seu líder, Jeremy Corbyn enfrenta a revolta de metade dos membros seu governo-sombra e dos sectores mais moderados, que não querem que seja ele a enfrentar eventuais eleições, depois do fiasco do referendo. Agarra-se ao poder como pode, mas o resultado deste confronto inevitável mergulhará o Labour em profunda convulsão.

Tudo isto é explicável pela dimensão estratégica da decisão britânica. Mais de 40 anos de pertença à União Europeia não se desfazem de um dia para o outro sem custos muito pesados. As consequências económicas far-se-ão sentir rapidamente. O Banco de Inglaterra anuncia que tem à disposição 250 mil milhões para salvar a libra. A Cornualha perguntou ao Governo quem lhe vai pagar os 60 milhões que recebe em fundos comunitários. O dinheiro que vai para os cofres de Bruxelas afinal não vai para o SNS. Um quinto das empresas britânicas pensam mudar para o estrangeiro algumas das suas operações.

Resumindo, nas sábias palavras de Chris Patten, conservador e anterior comissário europeu, “muitos dos que foram encorajados a votar, alegadamente, pela independência, vão descobrir que, em vez de ganharam liberdade, perderam o emprego”. Boris Johnson escreveu ontem na sua coluna do Telegraph que o Reino Unido continuava a pertencer à Europa e que a cooperação até vai ser ainda maior no futuro. O rival de Cameron gosta de escrever sobre Churchill e fazer comparações histórias sobre os males que vêm do continente. O problema é que não há hoje uma única razão para pedir aos britânicos “sangue, suor e lágrimas”. Por enquanto, está tudo em causa: os dois grandes partidos; a união do Reino; as relações com a Europa e o seu lugar no mundo.

2. Do lado de cá, não é possível dizer que a desorientação seja menor. Até à cimeira que tem início hoje em Bruxelas, multiplicaram-se os sinais contraditórios, tornando impossível divisar uma qualquer linha de rumo que signifique um pouco mais do que os jogos políticos e as frases de sempre.

Também aqui há novidades inquietantes. Qual é a posição de Berlim? A de Merkel? A do SPD? Aparentemente, a chanceler não quer acelerar demasiado o mecanismo de saída e quer evitar um tom revanchista que já se ouve um pouco por todo o lado. O seu parceiro de coligação resolveu, desta vez, tomar uma iniciativa própria. A reunião convocada por Frank-Walter Steinmeier (SPD) com os seus cinco homólogos fundadores da comunidade terminou com um conjunto de ideias que apontam em sentido contrário: pressionar Londres para resolver rapidamente a saída e encontrar um “novo impulso” para a integração europeia. Diz a imprensa alemã que há um esboço de documento sobre as áreas em que se deve avançar, da defesa e segurança até à política energética, incluindo a velha ideia da “união política”.

Ontem, os dois ministros dos Negócios Estrangeiros alemão e francês, Steinmeier e Jean-Marc Ayrault (muito próximo do Presidente) apelaram a uma “união política” e convidaram os outros países a segui-los. Assente em quê? São prudentes quanto à necessidade de mudar as políticas de austeridade, mas falam no assunto. Defendem uma Europa a várias velocidades. A chancelaria de Berlim já fez saber que Merkel não tem nada a ver com este documento. Pelo contrário, a chanceler informou ontem o seu partido que não havia condições para um avanço no sentido de mais integração. A prudência de Merkel (alguma imprensa acusa-a de ser eternamente hesitante), também se compreende com a necessidade de salvaguardar os grupos económicos alemães, que não querem que o "Brexit" lhes dificulte os negócios. O líder da CSU (partido irmão da CDU na Baviera) já a avisou que a sua poderosa indústria automóvel pode sofrer um grande abanão.

O SPD resolveu aproveitar o "Brexit" para se demarcar da chanceler, olhando para as eleições do próximo ano? Em que tabuleiro joga o Presidente Hollande? Na tradicional iniciativa franco-alemã, para salvar as aparências? Ou no campo da reunião dos seis e dos dois em Berlim? Só o facto de ter havido uma reunião a seis já é um contributo para aumentar ainda mais a desconfiança dos outros. Em Lisboa e em Helsínquia, os governos protestaram, mesmo que com boas maneiras. Os seis querem avançar com uma Europa a várias velocidades? A Holanda está no mesmo diapasão da França? Qual é o papel da zona euro (19 países) na definição dessas fronteiras? Onde ficam países do euro, como Portugal, Espanha e a Grécia nessa estranha reencarnação dos seis fundadores? Dentro ou fora? Por vontade de quem?

O regresso da ideia de uma pequena Europa numa altura em que o mundo se tornou multipolar e os grandes países emergentes desafiam a ordem ocidental, deixou de fazer sentido. John Kerry vai a Londres e a Bruxelas em missão de “peacekeeping”. Os americanos têm boas razões de preocupação.

Há uma citação de Winston Churchill que Boris deve conhecer de cor. “O problema do suicídio político é que quem o comete vai continuar a viver para lamentá-lo.” Ou então Gedeon Rachman, colunista do FT, tem razão quando escreve que não acredita “que o Brexit aconteça mesmo”.

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