Dá-lhes com democracia!

Para além do topete de dar a palavra ao povo, aquilo em que a convocação do referendo grego mais irrita chancelarias, ministérios das finanças e eurocratas é o facto de, através dele, o governo grego sair da armadilha.

Depois de o FMI recusar o plano grego (por uma parte do equilíbrio orçamental ser pago pelas maiores e mais lucrativas empresas e pelos salários mais altos, em vez de por mais cortes aos reformados e aumentos de preços) e depois de o Eurogrupo ter feito alegre coro com essas firmes exigências de mais austeridade para quem está na miséria ou à beira dela, o governo grego anunciou um referendo acerca do pacote de exigências que as instituições europeias pretendem impor, para desbloquear o financiamento ao país.

Em Bruxelas, caiu o Carmo e a Trindade – ou o que quer que seja que por lá exista de equivalente.

Não obstante, o recurso ao referendo como arma política e instrumento legitimador nada tem de novidade.

Para desespero das esquerdas francesas, Charles de Gaulle recorreu extensivamente a ele quando as coisas lhe ficavam mais adversas.

Mais perto de nós, em 2008, o presidente boliviano Evo Morales enfrentou um ataque em regra às suas políticas progressistas, que incluía a ameaça bem real (e com implícito beneplácito estado-unidense) de uma secessão dos estados dominadas pela oposição, a par de apelos explícitos e continuados a um golpe militar.

Em vez de optar pelos anteriormente habituais endurecimentos de posições e escaladas securitárias, fez referendar o seu lugar, o do vice-presidente e os dos também eleitos governadores estaduais, pró-governamentais e oposicionistas. Foi confirmado no cargo com mais 8% do que tinha sido eleito, sendo também reconduzidos o vice-presidente e 6 dos 8 governadores provinciais (seus apoiantes, ou da oposição); nos outros 2 casos, houve novas eleições.

A legitimidade democrática saiu reforçada, os Estados Unidos chamaram de volta os seus especialistas e entusiastas insurreccionais, as forças mais conservadoras submeteram-se ao jogo democrático e deixou de se falar de golpes de estado, ou de partir o país em dois.

Nada permite afirmar que as consequências da convocação deste referendo na Grécia venham a ser tão positivas. E nada permite afirmar que o não venham a ser.

O que não lhe falta, certamente, é lógica, espírito democrático, dignidade e oportunidade.

O governo da Grécia foi eleito com o mandato de renegociar a dívida, de acabar com a espiral austeritária sobre os mais fracos, com o indigno diktat dos mangas-de-alpaca da troika e com o estado de calamidade social, de implantar medidas de dinamização económica.

Tal como, se quisermos, Pedro Passos Coelho foi eleito com o mandato de não aumentar os impostos e de não cortar pensões e salários.

Só que o governo da Grécia não é feito de gente capaz de vir, no dia seguinte, dizer que afinal é tudo ao contrário do que se comprometeram e que até querem ir mais longe do que as exigências da troika.

Para o governo grego, tal como supostamente para qualquer pessoa de bem, aceitar um acordo que põe em causa uma parte daquilo para que foram eleitos – mesmo sendo esse acordo muito menos mau do que lhes queriam inicialmente impor – requer que os eleitores se pronunciem explicitamente.

A decisão de não aceitar esse acordo, num quadro que é já diferente do das eleições, requer por seu lado um apoio popular maioritário que a legitime democraticamente perante os cidadãos que dela discordem, perante os potenciais entusiastas de pronunciamentos militares e perante os impositores de inevitabilidades, ao mesmo tempo que reforça a posição governamental e nacional, na busca de alternativas.

Para além, se quisermos, dessa ideia caída em desuso numa Europa de supremacias nacionais e financeiras: a de que, em estados democráticos, as opções mais decisivas devem ser tomadas democraticamente.

Um outro aspecto fulcral é que os impasses e tentativas de diktat a que temos vindo a assistir, por parte das instituições europeias e do FMI, pouco têm a ver com economia, mas antes com política.

Têm em parte a ver – como o demonstra a justificação do FMI para recusar a última proposta grega, até aí rotulada como "uma boa base de trabalho" – com a continuidade de imposição, a países que estão financeiramente fragilizados, de um quadro específico de políticas económicas e sociais, independentemente daquilo que queiram os seus governos ou os seus povos.

(E aqui, é curioso verificar que, se Marx escreveu metafórica e panfletariamente que os governos são "o conselho de administração delegado da burguesia", temos hoje banqueiros a exigir mandar – e mandando – nos governos.)

Mas têm sobretudo a ver com a tentativa de tornar impossível a existência de governos, países e povos que se recusem a acatar, submissos, a destruição da sua economia e coesão social, em nome de ideologias e interesses que não escolheram nem escolhem.

Têm sobretudo a ver com tornar impossível a vida ao governo grego, procurando criar uma lose-lose situation que o destrua e afaste veleidades semelhantes noutros países: inviabilizar as condições para a prossecução mesmo que parcial do seu programa (por sensato que ele seja), de forma a que ou se submeta, perdendo a credibilidade popular, ou crie uma situação provisoriamente caótica na tentativa de não se submeter, perdendo apoio para as soluções que preconiza.

Para além do topete de dar a palavra ao povo, aquilo em que a convocação do referendo grego mais irrita chancelarias, ministérios das finanças e eurocratas é o facto de, através dele, o governo grego sair da armadilha.

Uma eventual aceitação das agora mitigadas exigência euro-éfeémisticas não seria uma traição, mas uma opção popular, tal como a sua recusa não seria uma caturrice de radicais, mas uma decisão partilhada pelo país.

Para além disso, o anúncio de referendo já não pode levar ao derrube de governos a partir do exterior – ao contrário do que aconteceu, há anos atrás e por exigência troikista, com o governo eleito do Pasok – e, pelo contrário, reforça a posição negocial da Grécia a nível mundial, ao demonstrar que não se pretende submeter e que está disposta a correr os riscos inerentes.

Isto porque, ao contrário do que têm insistido em imaginar os governos europeus e os comentadores encartados, a solução do problema da Grécia não está restringida às fronteiras do Euro, ou mesmo da União Europeia.

Mesmo com os cofres pouco cheios, seria para a Rússia uma pechincha ajudar a Grécia, ganhando influência sobre um país fulcral da NATO que lhe pode dar acesso ao Mediterrâneo, e sobre um país da União Europeia que pode, por exemplo, vetar sanções da União sobre outros países.

Os interesses dos Estados Unidos não permitem, por essas razões, que a Grécia seja empurrada pela UE para o colo da Rússia. 

Para além disso, em termos económicos, também não permitem que braços-de-ferro de supremacia política e ideológica abram uma brecha no Euro de consequências imprevisíveis, mas que quase certamente incluiriam fortes mudanças cambiais e efeitos recessivos na Europa, com impacto na própria economia norte-americana e nos mercados financeiros mundiais.

Só se estranha, então, que só agora Obama faça saber que insta Merkel a assegurar as condições para que a Grécia não saia do Euro e para que a dívida grega seja restruturada. Mas entre o anúncio do referendo e a divulgação desse telefonema, a relação não será certamente casual.

Também a China se não pode dar ao luxo de uma cotação do Euro turbulenta, ou de recessão num continente fulcral para as suas exportações e, consequentemente, para a sua economia.

E também ela, sábado à noite, veio pedir uma solução estável que viabilize a manutenção da Grécia no Euro, ao mesmo tempo que se oferecia para, se necessário, sacar do livro de cheques.

Se não tivesse (como tem) as virtudes da dignidade, democraticidade, coerência e oportunidade, a convocação do referendo na Grécia teria pelo menos uma outra virtude: a de tornar evidente a miopia política, a auto-negação estratégica e o narcísico bruxelocentrismo com que todo este problema tem sido tratado, desde o início.

Antropólogo

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