Da mudança de presidente à mudança de regime

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Os turcos elegem directamente, pela primeira vez, um Presidente da República. Até agora era eleito pelo Parlamento. Estas eleições têm, no entanto, um alcance muito maior: abrem caminho a uma mudança de regime. Recep Tayyip Erdogan aposta num sistema presidencialista, que lhe dará vastos poderes. Tem em mente o modelo francês.

Quando se fala em mudança de regime não se pensa apenas no aspecto constitucional: refere-se o risco de uma deriva para um regime de poder pessoal, uma democracia plebiscitária. Os adversários acusam-no de sonhar com Luís XIV: “L’Etat, c’est moi.”
Comecemos pela votação de hoje e pela política corrente.

Erdogan tem sorte
As últimas sondagens disponíveis (realizadas em Julho) indicam a provável vitória do líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) logo na primeira volta. Desde 2002, o AKP ganhou oito eleições consecutivas: três parlamentares, três locais e dois referendos. Erdogan é um extraordinário actor eleitoral. Por outro lado, teve à sua disposição uma esmagadora máquina de propaganda, inclusive com recursos do Estado. A sua popularidade, embora em relativa erosão, permanece muito alta.

Os dois principais partidos da oposição, o Partido Republicano do Povo (CHP, secularista de esquerda) e o Partido do Movimento Nacionalista (MHP, nacionalista de direita) “ajudaram” Erdogan. Escolheram um candidato de unidade, independente e com perfil religioso: Ekmeleddin Ihsanoglu. É um intelectual prestigiado, diplomata competente e antigo secretário-geral da Organização para a Cooperação Islâmica. No entanto, mostrou não ter carisma nem experiência política. Defendeu a manutenção do regime parlamentarista, mas foi infeliz na formulação ao declarar que o Presidente “não deve fazer política”. Deu o melhor argumento de campanha a Erdogan, que prometeu ser um presidente activo, decidido a impor as suas escolhas ao governo e a promover reformas profundas.

O terceiro candidato, o curdo Selahattin Demirtas, 41 anos, será a surpresa. Poderá duplicar a votação tradicional do partido curdo, aproximando-se dos 10 %. O segredo foi alargar a sua campanha para lá da causa curda, tornando-se porta-voz de todas as minorias, do feminismo, do ambiente, da tolerância dos costumes e da descentralização administrativa.

A chave da popularidade
A que deve Erdogan tanta popularidade após mais de uma década de poder? Kemal Karpat, o grande historiador político da Turquia, responde numa entrevista: “O AKP fez coisas extraordinárias na última década. (...) A Turquia mudou em termos materiais. Há seis meses viajei pela Anatólia. É inacreditável. As aldeias e cidades que conheci há seis anos mudaram completamente.” O rendimento per capita da população foi multiplicado por quatro.

Mas, ao mesmo tempo, a sociedade mudou. “Emergiu uma nova geração, assumindo novos valores e aspirações. Os antigos padrões já não são suficientes. Estou a falar nos padrões de há 15 anos atrás. O AKP fez isto.” E reside aqui o novo desafio: saberá responder aos novos valores e aspirações? É o critério por que Erdogan será julgado.

O AKP protagonizou, com o apoio das elites liberais e com a cobertura da Europa, uma outra mudança de regime: pôs termo à democracia tutelada pelos militares. Desde os anos 1960 que a regra era: “Os militares mandam mas não governam.” As grandes decisões políticas e estratégicas dependiam dos comandos militares. Bastava um comunicado do estado-maior para fazer cair um governo. Eram os guardiões da ortodoxia kemalista e da unidade nacional — em particular na questão curda. O ano decisivo foi 2007 quando as Forças Armadas vetaram a candidatura de Abdullah Gül à presidência e tiveram de recuar. E, em 2010-11, Erdogan impôs a supremacia do governo na nomeação das chefias militares.

O secularismo radical dos kemalistas, que dominavam a administração pública e os tribunais, foi abolido. Também aqui, os “padrões” de há 15 anos atrás mudaram radicalmente.

Democracia em risco?
A grande questão está noutro plano. É assim equacionada pelo editorialista Kerim Balci no diário Zaman: “Não é segredo que o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan está a planear transformar a democracia parlamentar turca numa oligarquia presidencial. Está a planear o controlo dos quatro poderes — o legislativo, o executivo, o judicial e os media — de forma tornar-se num presidente que tudo concentra.” Balci, tal como o Zaman, estão ligados ao movimento do líder religioso Fetullah Gülen, que de aliado de Erdogan se tornou no seu mais severo crítico.

O problema não é o presidencialismo, um regime normal em democracia. É o risco de anulação do sistema de checks and balances, ou seja da separação dos poderes. Na Turquia, os mecanismos de controlo e limitação do poder político estão em patente erosão desde há três ou quatro anos.

“Uma vez no poder, Erdogan passou a olhar as eleições como único instrumento da legitimidade democrática”, escreve Sinan Ülgen, presidente do Centro de Estudos de Política Económica e Estrangeira, um think tank independente de Istambul. “Sobrevaloriza a importância das instituições de representação em detrimento das instituições de controlo. Este fetichismo da ‘vontade nacional’ conduz à lei da maioria, que provou ser inimiga do progresso democrático. Outro importante desafio será a capacidade de tolerar a dissidência.”

Erdogan tem pela frente dois problemas. Para institucionalizar o presidencialismo quer fazer uma nova Constituição. Para isso, precisa de uma maioria de dois terços dos deputados, o que o AKP nunca conseguiu. Haverá eleições legislativas em 2015. A estratégia que os analistas lhe atribuem é um compromisso com os curdos: em troca da satisfação das suas principais reivindicações, os deputados curdos viabilizariam o projecto presidencialista.

O segundo problema é o da resistência da sociedade. Anota o historiador Karpat: “A atitude ‘eu tenho apoio popular, o povo escolheu-me, logo sou livre de fazer tudo o que quiser’ fracassará. Afectaria a imagem da Turquia no mundo. Há um retrocesso no Estado. Não pode durar. A Turquia já não é o país que era dantes. Não pode ser. Por outras palavras, construir a nova Turquia exige uma nova abordagem democrática, uma nova forma de administrar e a abertura de novos horizontes.”

A esmagadora vitória do AKP em 2011 não impediu os diversos movimentos de protesto que culminaram no “movimento Gezi”. Uma eleição é uma coisa, a dinâmica social é outra. São coisas em que Recep Tayyp Erdogan deveria pensar.

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