Cristãos perseguidos unem igrejas separadas por mil anos

Encontro simbólico entre o Papa Francisco e o Patriarca de Moscovo marca aproximação da Igreja Católica e Ortodoxa, separadas desde 1054.

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Pela primeira vez em quase mil anos, os líderes da Igreja Ortodoxa Russa e da Igreja Católica encontraram-se pessoalmente Adalberto Roque / Reuters

Um milénio de costas voltadas não se resolve numa reunião de um par de horas. Mas não deixou de ser histórico o encontro desta sexta-feira entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill, em Havana, o primeiro entre os líderes da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa russa desde o Grande Cisma de 1054.

O momento esperado ocorreu numa sala do aeroporto José Martí, quando Francisco e Kirill se cumprimentaram com um abraço e um beijo em cada face, sob o olhar atento do Presidente cubano, Raúl Castro. “Somos irmãos. É essa a vontade de Deus”, começou por dizer o Papa, assim que encontrou o Patriarca. “Não posso afastar a sensação de que nos estamos a encontrar no tempo certo, no local certo”, afirmou Kirill.

Apesar de curto, o encontro entre Francisco e Kirill foi preparado durante vários meses e em segredo. O desejo de uma aproximação tem feito parte da agenda do Vaticano, mas nem João Paulo II nem Bento XVI conseguiram um encontro com o líder da Igreja russa. No final do encontro, os dois líderes religiosos assinaram uma posição conjunta a pedir a protecção dos cristãos perseguidos no Médio Oriente.

Para superar uma ruptura milenar era necessária uma conjugação única. Por um lado, uma Igreja Católica liderada por um Papa com boa imagem em Moscovo – ao contrário do polaco João Paulo II – a que se soma uma ameaça comum: o radicalismo do autoproclamado Estado Islâmico. Foi a defesa das minorias cristãs no Médio Oriente, um tema em que é fácil alcançar concórdia, que forçou a reaproximação das duas hierarquias religiosas.

“É um encontro simbólico. Ninguém deve esperar que no dia seguinte o mundo mude”, dizia à BBC o porta-voz do patriarca de Moscovo, Vakhtang Kipshidze, alguns dias antes. “No entanto, qualquer passo para uma resposta comum a desafios comuns é algo que deve ser considerado e apoiado.”

Com a bênção de Putin

As razões apontadas para esta aproximação são várias, mas é certo que o passo derradeiro terá sido dado pelo patriarca Kirill. Há cerca de um ano, o Papa já tinha telefonado ao líder ortodoxo para lhe garantir a total disponibilidade para um encontro.

“Um encontro entre Kirill e Francisco não teria ocorrido sem a bênção do Kremlin”, escreve no Moscow Times o teólogo Andrei Desnitski. Há uma relação bastante estreita entre as duas instituições, que adopta ora uma postura de simbiose ora de competição. Desde que chegou ao poder, Vladimir Putin aproximou-se da Igreja Ortodoxa, afirmando-se como defensor dos seus valores conservadores, muitas vezes em contraponto com um Ocidente apresentado como “materialista”.

A Igreja Ortodoxa Russa passou então a gozar de uma influência na sociedade de que não dispunha desde os tempos do Império Czarista – e que se materializa nos subsídios governamentais que atingiram 256 milhões de rublos (quase três milhões de euros), entre 2013 e 2015. Mas nem sempre os objectivos do Kremlin e do Patriarcado de Moscovo coincidem. A intervenção russa na Ucrânia motivou críticas e apoios dentro da Igreja, mas Kirill recusou apoiar qualquer dos lados, lembrando que há fiéis “dos dois lados das barricadas”.

O encontro entre Kirill e Francisco estará sobretudo relacionado com a luta interna pela preponderância no universo ortodoxo. Ao contrário da Igreja Católica, a Ortodoxa não tem uma hierarquia liderada por uma única figura, sendo composta por várias igrejas autocéfalas, da qual a russa é apenas uma – apesar de ter o maior número de seguidores, cerca de 130 milhões. A hegemonia é disputada pelos patriarcas de Moscovo e Constantinopla, a mais influente igreja ortodoxa.

As relações entre Francisco e o Patriarca Bartolomeu de Constantinopla são boas, com vários encontros entre os dois. “Uma recusa de Kirill em encontrar-se com Francisco não iria ajudar à sua popularidade entre os outros líderes da igreja e iria fazer Bartolomeu parecer o único representante legítimo da Igreja Ortodoxa”, conclui Desnitski.

Putin terá outras razões para apoiar o encontro entre os dois líderes religiosos. Em Junho, o Papa recebeu o Presidente russo no Vaticano e as relações entre os dois são encaradas por vários diplomatas como positivas. Algo diferente do que ocorria com João Paulo II, por exemplo. Putin “compreende que o Papa é um elemento importante no cenário mundial e julgo que ele gostaria de ter a possibilidade de usar a melhoria das relações entre o Vaticano e a Igreja Ortodoxa russa para fazer passar a visão do Kremlin no Vaticano”, disse à Reuters um diplomata sob condição de anonimato.

A escolha de Havana para palco do encontro histórico tem também ela um significado político. Depois da queda da União Soviética, o regime cubano estabeleceu fortes relações com a Igreja Ortodoxa russa e, em especial, com o actual patriarca, que visitou a ilha por três vezes. O Vaticano lançou, por seu turno, as bases para o reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA e Francisco visitou a ilha em Setembro.

A travar qualquer aproximação esteve durante décadas a recriminação feita pela Igreja Ortodoxa russa de “proselitismo” por parte do Vaticano, especialmente no que respeita à Ucrânia. O Patriarcado de Moscovo exerce influência sobre fiéis em praticamente todos os ex-territórios da União Soviética, à excepção da Geórgia e da Arménia – países que possuem igrejas ortodoxas autónomas – e criticou as tentativas do Vaticano para estender a sua autoridade sobre a Ucrânia Ocidental, onde a força da Igreja russa sempre foi menor.

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