Correa trocou o “socialismo do século XXI pelo extractivismo do século XXI”

A Constituição equatoriana dá direitos à Natureza e reconhece a inviolabilidade de territórios na Amazónia de tribos isoladas. Mas o petróleo está a derrubar os princípios, acusa o economista Alberto Acosta, um dos homens que lançou essa Constituição.

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Alberto Acosta levou para o primeiro Governo de Correia a ideia de deixar o petróleo no subsolo nos lotes ITT do Parque Yasuní Enric Vives-Rubio/PÚBLICO

O Equador tentou seduzir o mundo com uma ideia: “Paguem-nos para não explorarmos as reservas de petróleo nos lotes ITT do Parque Yasuní, na Amazónia, que é das zona mais ricas em biodiversidade do mundo”. Pediam 3600 milhões de dólares, metade do valor em que estava avaliado aquele petróleo. Mas as doações só chegaram a 13 milhões dólares e, em Agosto, o Presidente Rafael Correa pôs ponto final na iniciativa, que foi lançada quando Alberto Acosta era ministro da Energia e Minas. “Um dia o Presidente garantia que deixaria o petróleo no subsolo e no dia seguinte dizia que iria extrai-lo, o que soava a chantagem”, disse ao PÚBLICO, em Lisboa, onde veio a convite do Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral, para participar no projecto Contraponto: leituras plurais do mundo, os modelos de desenvolvimento em questão.

Desde que Correa anunciou a decisão de avançar com a exploração petrolífera, o valor dos campos Ishpingo, Tambococha e Tiputini (ITT) disparou: as reservas passaram a valer 18 mil milhões de dólares e fala-se também em 40 mil milhões de dólares, dependendo dos preços que o petróleo atingir nos próximos anos. O economista Acosta, que estuda o conceito de uma alternativa ao desenvolvimento inspirada nos povos indígenas denominado “bom viver”, entrou em rota de colisão com Correa — até se candidatou contra ele nas últimas presidenciais, em Fevereiro. Num país onde a Constituição consagra os direitos da natureza, Rafael Correa está a transformar-se num caudillo que conduz o Equador por caminhos muito pouco revolucionários, afirma Alberto Acosta.

A iniciativa Yasuní ITT fracassou, mas houve sempre a sensação de que o Presidente Rafael Correa estava à espera do momento em que falhasse para avançar com a exploração petrolífera…
Em 2007 colocou-se a possibilidade de deixar o crude no subsolo. O normal num país como o Equador, dependente do petróleo, seria explorar tudo. Abrir a porta à possibilidade de não explorar foi muito importante. É preciso reconhecer o mérito de Rafael Correa em aceitar esta iniciativa, que surgiu da sociedade civil, ainda antes de ele ser Presidente. Eu fui ministro da Energia e Minas, e propu-la ao Governo. O lamentável é que o Presidente não tenha cristalizado esta iniciativa revolucionária. Em 2010 ele disse que este era o projecto emblemático do que ele denomina a Revolução Cidadã. Falhou não só porque não houve apoio internacional, mas porque o Presidente não deu confiança para uma iniciativa tão importante. Há que ver quem falhou dentro do país, e é evidente: falhou o Presidente e o seu Governo. Não deu um sinal claro a nível internacional: um dia garantia que deixaria o petróleo no subsolo e no dia seguinte dizia que ia extraí-lo, o que soava a chantagem.

A economia do Equador continua a assentar no petróleo?
Sim. Começámos a exportar crude da Amazónia em Agosto de 1972 e passados 42 anos, quando o petróleo já começa a acabar-se, continuamos a depender das exportações de petróleo, que representam cerca de 60% do total. Hoje 30 a 35% da receita fiscal vem do petróleo e 16-18% do PIB deve-se a ele. Mas as reservas são apenas entre 3200 e 4200 milhões de barris. Há que preparar-se para deixar de ser um país-produto, que tem sido sinónimo de uma economia subdesenvolvida. Mas o que é o Governo está a fazer? Um, alarga a exploração petrolífera aos lotes ITT. Dois, amplia a fronteira petrolífera ao centro-sul da Amazónia equatoriana, para entregar novos lotes para exploração em zonas onde há pouco petróleo e muitas populações, logo o potencial de conflitos é grande. Três, abre portas à mega-mineração, um processo iniciado pelos governos neo-liberais. Quatro, está a abrir caminho aos biocombustíveis (cana de açúcar e palma africana), que são para alimentar carros e não seres humanos. Quinto, quer mudar a Constituição, que proíbe os organismos transgénicos. Então, no Equador não se está a viver um processo de socialismo do século XXI, o que se vive é um extractivismo do século XXI.

O Presidente disse que a exploração dos lotes ITT permitirá que a economia cresça 8% anualmente, o que fará com que em 2017, quando acaba o seu mandato, consiga erradicar a pobreza no Equador. Correa está com pressa por causa da herança que quer deixar?
Essas são ilusões sem sustentação. Parece-me muito bem que se elimine a pobreza no Equador. Mas a extracção do crude, se realmente avançar — ainda não foi dita a última palavra —, só começará a fluir a partir de 2015 ou 2016. De início sairá muito pouco. Será em 2017 que se deverá atingir o nível de extracção desejado, que é de 110 mil barris anuais de um crude muito pesado, muito contaminante, e deve continuar durante uns 10 ou 12 anos. Então, não é correcto que se possa reduzir a pobreza com os lucros do petróleo até 2017. A questão é a seguinte: com os ITT poder-se-ão obter 40 mil milhões de dólares, em termos nominais, sem levar em conta a inflação. Mas não será uma de uma vez, será ao longo dos anos. No entanto, o Presidente e o seu Governo tiveram mais de 150 mil milhões de dólares inscritos no Orçamento de Estado em sete anos e não resolveram a pobreza — reduziu-se, de uns 37% para 27%, o que é bom.  Mas este discurso é errado, distorce a realidade para justificar a extracção de petróleo.
O que eu pergunto é como é que se pode mudar tão rapidamente de ambições? Os argumentos a favor da iniciativa Yasuní ITT desapareceram da noite para o dia. Dizia-se que havia ali povos em isolamento voluntário (como os Tagaeri, os Taromenane e outros) e agora já não há; dizia-se que era preciso proteger a biodiversidade, e agora argumenta-se que só será afectado um milésimo do Yasuní; dizia-se que se iam conseguir 7200 milhões de dólares em termos correntes agora fala-se até em 40 mil milhões. Há aqui uma mudança de visão. O que era bom antes é mau agora.

E porque é que o Presidente mudou tanto, de repente?
Essa seria a pergunta de fundo. Talvez não estivesse assim tão convencido com a iniciativa Yasuni ITT e não tinha como desenvencilhar-se dela, só o fez depois de consolidar o poder nas últimas eleições [Fevereiro]. Outra possibilidade é a que esteja a preparar-se para obter créditos, com base nos recursos dos lotes ITT. Outro argumento, concomitante a este, é o de que podem haver grandes pressões chinesas, pois a China está a emprestar-nos muito dinheiro, e é quem se vai encarregar da construção da nova refinaria do Pacífico. Mas as verdadeiras razões só o Presidente as sabe. O que fica claro é que o Governo mudou radicalmente de posição.

Qual é a importância da presença chinesa no Equador?
Bom, os chineses estão numa vaga de compras por todo o mundo. A China é um dos grandes fornecedores de crédito a nível internacional, é quem empresta dinheiro aos Estados Unidos e a muitas outras economias. Usam o dinheiro para comprar campos petrolíferos, minas e terras agrícolas em todo o mundo, para investir em actividades produtivas e em grandes projectos de construção. A economia equatoriana, em resultado da auditoria à divida externa em 2008 e à renegociação dos Bonos Global, ficou com o acesso bloqueado aos mercados financeiros normais, e teve de recorrer à China. Fomos contratando cada vez mais empréstimos com Pequim, uma quantia que chega a 9300 milhões de dólares. Muitos são feitos contra a garantia de petróleo, e o Governo precisa deste dinheiro não só para realizar obras de infra-estruturas, como hidroeléctricas, mas também para financiar o Orçamento do Estado. Criou-se uma enorme dependência financeira. Há uma série de empresas chinesas que estão a construir obras públicas, e a explorar petróleo muito próximo do ITT. Exploram também minas de cobre [Mirador, por exemplo) e em breve de ouro.

Correa é um Presidente popular. Mas foi criada uma grande expectativa em torno da iniciativa Yasuní ITT. Como reagiram os equatorianos à decisão do Presidente?
Quem está mais próximo do Governo aceita de forma acrítica, o que é lamentável. Seis anos de argumentos muito sólidos para manter o petróleo na terra desaparecem num instante.
Outros reagiram com surpresa. Com indignação. Quando o Presidente fracassou na iniciativa Yasuni, diferentes grupos mobilizaram-se para recolher assinaturas e convocar uma consulta popular sobre a extracção de petróleo nos lotes ITT [ao abrigo do previsto na Constituição]. O Presidente não teve coragem de convocar o referendo, como seria correcto. Se houver a consulta popular, a ultima palavra será do povo equatoriano, que dará o sinal claro ao mundo que o seu Presidente não deu.

Há uma polémica com os povos isolados, os antropólogos apresentaram um relatório à Comissão Interamericana de Direitos Humanos dizendo que há mais povos indígenas que vivem em isolamento voluntário no Yasuní, junto à zona que vai ser explorada.
Até Agosto, os povos em isolamento voluntário eram  um grande argumento para não explorar o petróleo nos lotes ITT. Havia mapas oficiais que assinalavam os seus territórios. Agora há novos mapas onde eles já não existem. O potente cheiro a petróleo no Governo fez desaparecer os povos isolados. Mas não nos esqueçamos que não só há a Zona Intangível [uma área de 700 mil hectares do Parque Yasuní declarada a salvo de colonização ou de toda a extracção de recursos naturais, criada por decreto governamental] como o artigo 57 da Constituição garante que o território dos povos em isolamento voluntário está totalmente vedado a qualquer actividade de extracção. Pode gerar-se um crime de etnocídio. Portanto, é uma questão de direitos humanos que devem ser respeitados.

Correa não está a respeitar a Constituição, que dá direitos à Natureza?
É uma realidade. Há muitas questões que não estão a ser respeitadas por Correa. Em Agosto, disse que “é um erro supor que os direitos humanos estão subordinados aos supostos direitos da Natureza” — o que é um sinal de que não sabe o que significam os direitos da Natureza e está disposto a desrespeitá-los. Nunca os direitos humanos se subordinam aos direitos da Natureza, são complementares. Os direitos da Natureza, em última instância, são o direito dos seres humanos a existir. O que distinguiu o Equador foi terem-se discutido os princípios de uma nova Constituição antes de se chegar ao poder. Isso permitiu ter uma muito ampla participação social. Estabeleceram-se os princípios do Sumak Kawsay ou “bom viver”, os direitos colectivos, os direitos da Natureza, a água como direito humano fundamental. Todo este processo tão rico foi-se fechando, porque o Governo está a limitar as possibilidades de debate. Rafael Correa não está a respeitar o artigo 57, que garante a vida dos povos em isolamento voluntário e, para isso, fá-los desaparecer do mapa. Persegue quem exerce o direito à resistência, consagrado no artigo 98: há mais de 200 pessoas criminalizadas por defender a água, por defender a selva, por defender a vida, em suma. Poderia continuar a dar exemplos de violações à Constituição, que pôde surgir graças ao actual processo político. Mas o Presidente já não a quer aplicar, porque a Constituição se tornou uma camisa-de-forças para alguém que está a aplicar práticas caudillistas, autoritárias e desrespeitosas, não democráticas.

O que é mudou em Rafael Correa, desde que estava com ele, em 2007, até agora?
Vejo que mentalmente se foi afastando cada vez mais dos princípios fundamentais. O Presidente Correa é como um desses condutores irresponsáveis que piscam para a esquerda e curvam para a direita.

Rafael Correa é um autocrata?
É um caudillo. É uma pessoa que se assume como portadora da vontade colectiva, que crê saber quais são os problemas da sociedade, que acredita ser o único que sabe do que é a sociedade precisa. Não se construiu um processo democrático e participativo, mas antes um processo vertical, personalista e autoritário. O Presidente impõe os seus princípios pessoais sobre o que eram as propostas de um largo espectro político. Ele é conservador em essência. Defende o nome de Deus na Constituição, está contra praticamente todas as formas de aborto, só quer o aborto terapêutico. Está contra o casamento homossexual. É uma pessoa conservadora, em termos religiosos, e em termos económicos é um neo-keynesiano, não é um revolucionário.

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