Corre, Taiwan, corre

Depois de anos de pacificação das relações com o "continente", há sinais de inversão do caminho. A população inqueta-se com a paciência e a perspicácia com que a China vai apertando um nó em volta da ilha.

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Manifestação contra a política de aproximação à China em Taipé, frente ao palácio presidencial Reuters

No museu mais ruidoso do mundo, a fila para a sala onde está a couve é muito longa mas avança depressa. Quinze minutos de espera e ela aparece, pequenina — não é maior do que a mão de um adulto. Há quem diga que é delicada, por causa dos pormenores e das transparências. Há quem diga que é engraçada, por causa dos gafanhotos que se sustentam nela. É valiosa, porque é uma antiguidade e o escultor, anónimo, tinha arte, mas está longe de ser uma peça importante. Depois dos 15 minutos de espera só é possível olhá-la por breves instantes — há uma torrente de gente à espera para ver o objecto que Jin levou como dote ao tornar-se numa das mulheres do imperador chinês Guangxu, em 1889.

A couve — como tantos objectos e obras de arte que estão dentro do museu — pertence ao espólio da Cidade Proibida de Pequim, mas mora em Taiwan desde 1949, o ano em que Chiang Kai-shek teimou em não ser um general derrotado e abandonou a guerra civil, atravessou o estreito, e se instalou, com um milhão de pessoas, na ilha onde criou a República da China.

O dote de Jin é a peça mais popular do Museu Nacional de Taiwan. Foi sempre assim? A guia vacila, acaba a dizer que sim, mas que os chineses ajudaram.

O museu está inundado de turistas da República Popular da China. São tantos, tantos, que nos corredores, nas filas e nas salas de exposição acontece uma estranha coreografia aérea, com os guias agitando bandeiras com cores diferentes e chapéus-de-chuva com ursinhos de peluche pendurados, tentando ser vistos por todos os elementos do grupo que lhe foi entregue.

Não é maneira de ver um museu. Mas o museu de Taiwan não é só um museu. É uma arena política, um lugar onde se vê desfilar um conflito velho de 65 anos e que, devagarinho e com sinais ténues, como esta avalanche de turistas do "continente", se vai reabrindo.

Desde que a entrada de turistas chineses foi autorizada em Taiwan (com contrapartida para o lado de lá), que o número dos que chegam à ilha não pára de aumentar. No final deste ano, terão sido 2,5 milhões, um aumento de 47% em relação ao ano passado. A presença desta multidão nas ruas da cidade, nas lojas e em todos os monumentos e lugares turísticos perturbou a existência dos habitantes desta ilha profundamente fracturada sobre o que deve ser a relação com o país no outro lado do estreito.

"Há tantos chhcineses em Taiwan, agora. Há chineses por todo o lado, acho que eles vão acabar por nos apanhar", diz uma mulher, só com a promessa do anonimato. Dirá outras, mais à frente.

Taiwan é a ilha no Mar da China que, há muito tempo, já se chamou Formosa. Num tempo mais recente, tornou-se um problema complicado da política internacional. É um território disputado por dois governos, ambos chineses, o de Pequim e o de Taipé.

A relação entre os dois lados do estreito evoluiu ao longo das décadas. Os homens da guerra civil defendiam a opção belicista, com Mao Tsé-tung a falar na libertação de Taiwan e Chiang Kai-shek na unificação da China.

Mas evolução nem sempre quer dizer mudança. Quando Deng Xiaoping deitou fora a ideia da "libertação" para passar a preferir o conceito de "unificação", selou para sempre a política oficial do Governo chinês em relação a Taiwan. Em Setembro, ao receber em Pequim uma delegação de grupos taiwaneses pró-unifição, o actual Presidente, Xi Jinping, foi claro: "A unificação é, desde há muito tempo, o nosso objectivo e é um objectivo sólido. É um facto inquestionável que Taiwan e o continente pertencem à mesma China", disse, citado pelo jornal South China Morning Post.

Pragmática e lúcida, a pequena ilha — que viu ser transformada em pó a sua existência internacional a partir de 1971, quando a República Popular da China passou a ser reconhecida pelas Nações Unidas e pela maior parte dos países como o único Governo legítimo da China — percebeu que teria que se reinventar para evitar ser absorvida de facto pela China. Morto Chiang Kai-shek, arrancou com um processo de democratização que foi lento mas pacífico. Pelo caminho, Taiwan desistiu da ousadia de unificar a China a partir de Taipé, aspirou à independência de facto (a China não permitiu) e pacificou-se com o gigante, com a assinatura de uma plataforma de entendimento (o Consenso, de 1992) em que as duas partes se comprometeram com três "nãos": não haverá unificação, não haverá declaração de independência e não haverá agressão.

O consenso perdura, mas do outro lado do estreito o discurso nacionalista adensa-se — como mostram as palavras de Xi, um Presidente que leva à letra a Constituição no capítulo que define que é desígnio da República Popular reunificar todo o território que algum dia foi China.

"Os dois lados concordam que se trata de um só país. O problema é que nós, quando dizemos China, queremos dizer República da China, e quando eles dizem China querem dizer República Popular. Concordamos em discordar", diz a um grupo de jornalistas (entre eles o do PÚBLICO), o vice-ministro para as relações Taipé-Pequim, Chu-chia Lin.

Num passado recente, o Consenso já pareceu ser a solução definitiva para o problema de identidade e soberania de Taiwan. Recentemente, porém, o globalmente poderoso Governo de Pequim — o que está a levar a China ao primeiro lugar da economia mundial — tornou o tal desígnio mais agressivo, mais visível. Xi deu sinais de querer que a reunificação seja também um desígnio pessoal, ao dizer, em Outubro: "A questão da divisão política que existe entre os dois lados tem que ter uma resolução final e não pode continuar a passar de geração para geração."

Na cimeira da APEC (organização para a cooperação económia na Ásia-Pacífico), que se realizou a 9 e 10 de Novembro em Pequim, o representante de Taiwan, o ex-Presidente Vicent Siew, não foi convidado para o pequeno-almoço de líderes e no encontro com o Presidente Xi não foi apresentado como o enviado do Governo de Taiwan mas como "o respeitável senhor Siew". A notícia fez primeiras páginas nos jornais taiwaneses e foi motivo de um protesto no Parlamento por parte da oposição (Partido Progressista Democrático, DPP), a quem respondeu a vice-ministra dos Negócios Estrangeiros, Vanessa Sihi, que desvalorizou o episódio.

Na prática, e perante todos os parceiros da Ásia-Pacífico, o que Xi Jinping fez foi negar a existência de um Governo em Taipé. Num encontro com o grupo de jornalistas, um dia depois da cimeira, a vice-ministra insistiu que "a estabilidade regional e a prosperidade só podem ser alcançadas através da actual política" em que os dois lados não negam a autoridade do outro para governar.

Vanessa Sihi pertence a um Governo que, há um escasso ano, estava optimista sobre o rumo das relações Taipé-Pequim. O seu partido, e do Presidente Ma Ying-jeou, o Kuomitang (Partido Nacional Chinês, de Chiang Kai-shek), voltou ao poder em 2008 para dar início a uma nova fase nas relações Taipé-Pequim esperando enterrar a estratégia pró-independência dos oito anos de Governo DPP. Uma estratégia perigosa, avisou a China, que poderia levar a uma intervenção militar.

Com Ma Ying-jeou, Taiwan assinou um acordo de cooperação económica com Pequim que gerou 18 parcerias (desde a normalização das ligações aéreas a projectos co-financiados).

"Esta aproximação está-nos a deixar muito dependentes deles", diz a mulher que pediu o anonimato e que, como uma parcela significativa da população, receia que a entrada da China na economia de Taiwan tenha aberto a porta para um domínio de facto, a médio ou a longo prazo. "A nossa economia depende cada vez mais deles", diz.

Quarenta por cento das exportações taiwanesas vão para a China — quatro vezes mais do que para os Estados Unidos, um parceiro de negócios tradicional. O Governo de Ma tenta, com urgência, abrir novos mercados à economia da ilha, mas a China parece decidida a, usando apenas o seu apelo económico, estrangular cada vez mais a economia da ilha de 23 milhões de habitantes.

Durante a cimeira da APEC, foi anunciado um acordo de comércio livre na Ásia-Pacífico (o mercado privilegiado de Taiwan), para fazer frente ao que os Estados Unidos negocieam com Bruxelas e que fecha as portas da Europa aos chineses. Xi também selou um acordo comercial com a Coreia do Sul, outro grande parceiro tradicional de Taiwan. "Este acordo China-Coreia é uma ameaça séria. Os dados oficiais dizem que vai ter um grande impacte em Taiwan: por causa dele, o Produto Interno Bruto vai baixar 0,5%, as exportações vão descer 1,3%. Os nossos sectores mais competitivos — petroquímica, téxteis, indústria automóvel, metalurgia — vão ser afectados", reconhece o vice-ministro dos assuntos económicos, Shih-chao Cho, que teve que enfrentar os jornalistas um dia depois destes anúncios em Pequim.

A China cerca-nos, diz a mulher anónima, e quase admite o ministro, ao reconhecer que a frustração é crescente em Taipé. Pequim bloqueia a entrada de Taiwan na Parceria Trans-Pacífico e na Parceria Económica Regional, apesar dos esforços de Taipé, que se apressa a concretizar as Zonas de Comércio Livre, incentivando os vizinhos, cada vez mais atraídos pela força centrípeta da possante economia chinesa, a investirem na economia taiwanesa, a não desistirem de velhas alianças.

Sinal dessa frustração — e também do medo — foram os resultados das municipais do fim-de-semana passado. O Kuomitang sofreu uma derrota histórica e entre as cidades que perdeu está a capital, Taipé — nunca tinha acontecido. Venceu um independente. Em consequência, o Governo do primeiro-ministro Jiang Yi-huah demitiu-se. E o Presidente Ma — que em Março-Abril enfrentara a revolta estudantil nas ruas, o movimento Sunflower, em luta contra a aproximação a Pequim, argumentando que a abertura da economia aos chineses é a porta de entrada para criar dependência, primeiro, e "ocupação", depois — saiu da direcção do partido.

As sondagens dizem que, em 2016, o Kuomitang deverá sair derrotado das legislativas, perdendo o Governo e a Presidência. A alta tensão regressa. "Precisamos de uma economia forte [para sobreviver]. E receio que [se a hostilidade em relação à China] voltar à política os países percam a vontade de fazer negócios connosco, por causa da China", repetem, como se estivessem combinadas, todas as fontes oficiais com quem falamos em Taipé.

Taiwan, o país que há quem diga que não é um país, está numa corrida. Corre pela sua independência, corre pela sua identidade — veja-se o discurso aos jornalistas estrangeiros de Vanessa Shih: "Em nome do ministro dos Negócios Estrangeiros da República da China, dou-vos as boas-vindas a Taiwan". Outra sondagem recente diz que quase 70% dos habitantes consideram-se taiwanes, e só 30% ainda se dizem chineses.

Na ilha fracturada não há maiorias — a maior parte da população defende o statu quo (31,8%) e 28,2% querem viver assim para sempre. Só 20% da população deseja a independência, no futuro, e 6% sonham com a unificação com a China.

"Temos este problema político que tem que ser resolvido em Taiwan", diz Yun-Peng Chu, ex-ministro de Estado e director do think tank governamental National Policy Foundation.

Há quem defenda que o statu quo é um conceito que perdeu significado, que faz os taiwaneses viverem num mundo de faz-de-conta.

"Olhe só para eles, a passear num sítio destes", diz a mulher que só fala porque sabe que vai ficar anónima, a olhar para a avalancha de turistas, que tanto diz serem chineses como "do continente". Estamos no memorial de Chiang Kai-shek e os turistas fotografam sem parar — o carro, as roupas, as condecorações e até o sofá onde se sentou o inimigo de Mao, o inimigo da China. "Oh, ele só cometeu um erro. Todos cometemos erros", disse uma turista que foi ver "um general chinês" a uma perplexa jornalista da Nova Zelândia.

A jornalista viajou a convite do Governo de Taiwan
 

   

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