O pesadelo de Dilma: contas públicas chumbadas e campanha investigada

O Tribunal de Contas da União recomendou ao Congresso que rejeite o Orçamento relativo a 2014, o que acontece pela primeira vez desde 1937.

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Um boneco insuflável que representa Dilma posto à porta do Tribunal de Contas da União AFP PHOTO/ANDRESSA ANHOLETE

Há quase dois anos que a Presidente do Brasil não tem um dia de descanso, e terão sido muitas as noites passadas a afastar a palavra “impeachment” dos seus pesadelos. Esta semana, depois de o Tribunal Superior Eleitoral ter anunciado que vai mesmo investigar o rasto do dinheiro que entrou na campanha de Dilma no ano passado, o Tribunal de Contas da União veio provocar mais uma insónia à Presidente: por unanimidade, os oito juízes acusaram Dilma e o seu Governo de terem maquilhado as contas públicas relativas a 2014, e recomendaram ao Congresso que rejeite o documento.

Nenhuma das duas decisões implica necessariamente que a Presidente Dilma Rousseff venha a ser alvo de um processo de destituição (o impeachment de que se ouve falar), mas ambas enfraquecem a sua situação política, e são mais duas armas para o arsenal da oposição – como a estratégia é fazer com que o Congresso abra um processo de destituição, todas as más notícias para Dilma são boas notícias para os seus opositores.

No texto em que descreve as razões para ter recomendado a rejeição das contas do Governo pelo Congresso, o relator do processo, Augusto Nardes, disse que a Presidente Dilma Rousseff não conseguiu justificar as "irregularidades relacionadas à execução dos orçamentos". Por isso, concluiu que "não houve observância plena dos princípios constitucionais e legais que regem a administração pública federal, às normas constitucionais, legais e regulamentares na execução dos orçamentos da união e nas demais operações realizadas com recursos públicos federais".

Tão ou mais importante do que reter os pormenores das irregularidades que o Tribunal de Contas da União atribui às contas feitas por Dilma Rousseff, é o impacto da decisão em si. Em 80 anos de escrutínio das contas públicas, foi apenas a segunda vez que o Orçamento de um Presidente chegou ao Congresso com uma recomendação para ser rejeitado – para descobrir a primeira é preciso regressar a 1937, quando um golpe de Getúlio Vargas deu início ao Estado Novo brasileiro, que viria a durar até 1945.

Mas o actual cenário político no Brasil parece um filme em que não há personagens boas nem personagens más – a julgar pelo que se lê nos media do país, só há vilões.

Augusto Nardes, relator do Tribunal de Contas da União, foi recebido com gritos de "Nardes, guerreiro do povo brasileiro" por um grupo de manifestantes anti-Dilma quando saiu para anunciar a rejeição das contas públicas. Ao mesmo tempo, o jornal Folha de São Paulo avançou, na terça-feira, que a Polícia Federal e o Ministério Público "encontraram indícios" de que Agusto Nardes "pode ter recebido 1,65 milhões de reais [cerca de 380.000 euros] de uma empresa investigada sob suspeita de envolvimento com fraudes fiscais" – em resposta ao mesmo jornal, Nardes diz que se afastou da empresa em causa há dez anos e que desconhece tudo o que lá se passou desde então.

Na revista Veja, o colunista Felipe Moura Brasil nota que os "indícios" contra Nardes foram revelados pela Polícia Federal, que é supervisionada pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, apresentado como "um dos advogados de Dilma Rousseff" – por isso, conclui o colunista, "como dar credibilidade a uma descoberta tão vaga da Polícia Federal nessas circunstâncias, a despeito da competência e da seriedade de muitos de seus agentes?"

Também Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, representante do Partido do Movimento Democrático Brasileiro e um dos rostos mais visíveis da oposição a Dilma Rousseff, está debaixo de fogo.

Nesta quinta-feira, o jornal Folha de São Paulo noticiou que "Cunha e seus familiares figuram como beneficiários finais de contas secretas onde estão depositados 2,4 milhões de dólares [cerca de 2,1 milhões de euros]", aplicados em "fundos de investimento por meio de quatro contas abertas em nome de empresas offshore".

O presidente da Câmara dos Deputados não quis comentar esta notícia em particular, com o título "Suíça bloqueou 2,4 milhões de contas atribuídas a Eduardo Cunha", mas na semana passada garantira que não tinha contas no estrangeiro.

Na revista Veja, o colunista Reinaldo Azevedo relativizou as acusações contra Eduardo Cunha, notando que "a fonte de vazamentos contra o presidente da Câmara segue muito activa".

"Cunha já disse que não renuncia à presidência da Câmara. O seu destino, sejamos claros, independe do de Dilma Rousseff. Não foi ele que a levou para as cordas. Foi ela própria. Se a presidente for impichada, o futuro do deputado continuará a depender do que o Ministério Público reunir contra ele e da decisão dos ministros do Supremo."

A luta política e a constante publicação de notícias sobre investigações, processos e trocas de acusações de incompetência e corrupção entre todos os principais actores deste filme em rodagem que é o possível impeachment de Dilma Rousseff justifica-se porque essa hipotética destituição deverá ter de passar pelo Congresso. É no fundo, uma luta para ver quem consegue manter-se em jogo mais tempo – se os opositores conquistam votos suficientes no Congresso para destituir Dilma, ou se os apoiantes da Presidente conseguem continuar a escapar a esse cenário.

Mas nem mesmo a rejeição das contas do Governo é uma garantia de que o processo de destituição tem mais pernas para andar, disse à BBC Joaquim Falcão, director da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.

"Será uma novidade você dizer que cometer crime contra responsabilidade fiscal dá impeachment", disse o especialista. Segundo José Falcão, a rejeição de contas por governadores ou prefeitos resultaram sempre em multas ou na proibição de se recandidatarem em anos seguintes, mas nunca em impeachment.

Para além disso, Falcão argumenta que um Presidente só pode ser destituído durante o mandato a que dizem respeito as acusações, e no caso de Dilma as contas reportam-se a 2014, e ao final do seu primeiro mandato.

Em mais um sinal da profunda divisão do Brasil em dois campos, o professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Adilson Dallari, rejeita totalmente a opinião do director da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.

"Na sua avaliação", escreve a BBC, "quando um governante do poder executivo é reeleito, o seu mandato passa a ter oito anos na prática, pois não há interrupção de governo. Para ele, isso permite que juridicamente Dilma sofra um impeachment por actos praticados antes da sua reeleição".

"Essa teoria de restringir ao mandato actual é completamente absurda porque ela é um incentivo à corrupção", afirma Adilson Dallari, em total oposição ao que é defendido por José Falcão.

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