Consagração do multipartidarismo força os espanhóis a repensar a maneira de governar nos próximos anos

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As eleições regionais e municipais de domingo deixam a impressão de um corte ou de uma mudança de era. Traduziram-se, como se esperava, na fragmentação do sistema partidário na sequência de uma vaga de “sismos eleitorais”, de Madrid a Barcelona, de Valência a Saragoça. Nove em cada dez cidades exigem a celebração de pactos de governo. Note-se que 69% dos espanhóis consideram positivo o desaparecimento das maiorias absolutas.

O Partido Popular e o PSOE, o eixo do bipartidarismo que dominou em Espanha desde 1982, somaram pouco mais de 50% dos votos, contra cerca de 80% nos tempos áureos. A competição pelo poder deixa de se disputar entre dois partidos para se travar entre quatro ou mais.

Alguns falaram na abertura de uma “nova Transição” que sucederia à da democratização inaugurada em 1977. O que se anuncia não é um “novo regime”, mas algo de mais modesto, embora susceptível de largos efeitos: a passagem de um sistema bipartidário para um quadro multipartidário.

O Partido Popular sofre uma hecatombe, mas sobrevive como primeiro partido. O PSOE resistiu melhor do que se previa e permanece numa posição central no tabuleiro político. Os partidos emergentes quase “empataram” com os “dois grandes” e passam a ser o fiel da balança das coligações e da governabilidade. “O PP perde a hegemonia, o PSOE avança e os emergentes consolidam-se”, resume o El País em editorial. Enric Juliana, no La Vanguardia, sublinha que, para lá da fragmentação partidária, “a Espanha vira à esquerda”. A novidade não está no equilíbrio relativo dos partidos, mas na marcha para o multipartidarismo.

Se quisermos encontrar um vencedor político, temos de referir o Podemos: depois de ter tido um papel decisivo na “demolição” da hegemonia bipartidária, inspirou duas coligações que produziram grandes emoções na noite de domingo. Barcelona en Comú venceu na cidade catalã, derrotando o candidato da Convergência e União (do chefe do governo Artur Mas) e pondo em xeque o processo independentista. Na capital, a coligação Ahora Madrid não venceu, mas deverá assumir o governo da cidade graças a um pacto com os socialistas. Como à frente veremos, o futuro do Podemos é uma incógnita.

A cultura dos pactos
Doravante haverá em Espanha uma representação política mais diversa e fragmentada. Os sistemas partidários ou os métodos eleitorais não são bondosos ou maléficos em si mesmos. Na Espanha, o bipartidarismo levou à deslegitimação das instituições políticas. Na Itália, foi o sistema multipartidário que “se suicidou” ao anular a capacidade de decidir e governar.

Argumenta a politóloga Sandra León: “Pode acontecer que muitos dos que ontem [domingo] votaram o fizeram pensando que é possível uma outra forma de fazer política. Mas, de momento, aquilo que conseguimos foi um sistema político diferente que nos obriga a repensar a nossa maneira de governar, para os próximos meses e, seguramente, para os próximos anos.”

Um sistema multipartidário é susceptível de trazer vantagens (ver Ponto de Vista de domingo). “[Poderá fazer] com que o consenso se converta num elemento essencial da nossa democracia”, prossegue León. Mas adverte: “Um sistema baseado em pactos requer que os cidadãos estejam dispostos a aceitar que os partidos façam concessões no altar do consenso. Isto, que pode parecer óbvio, encerra um paradoxo. As mudanças que se produziram no sistema de partidos têm a sua origem na sensação, por parte dos eleitores, de que os partidos políticos tradicionais tinham traído a sua ideologia ou governado de costas voltadas para as preferências dos seus cidadãos.”

Esta nota antecipa as elevadas tensões implícitas na mudança das regras de jogo, exigindo também uma mudança da cultura política espanhola — é sempre um percurso longo e é o que falta provar. Esta tensão é agravada pela proximidade das eleições legislativas e da competição aguda que elas provocarão. O politólogo José Juan Toharia contrapõe uma sondagem optimista: 68% dos espanhóis aprovam que, na nova cena política, os partidos tenham liberdade para assinar acordos com partidos diferentes de lugar para lugar: as coligações de geometria variável.

O que está na ordem do dia são as coligações e pactos que assegurem a governabilidade e a gestão das autonomias, em profunda crise. Questões como o “modelo territorial”, num sentido federal ou outro, exigem largos consensos e só serão abordadas depois das legislativas. Se, inversamente, se entrar num semestre de instabilidade e turbulência, os dois grandes partidos poderão recuperar terreno e votos.

Podemos?
Pablo Iglesias e o Podemos ainda não abriram o jogo. A ambiguidade e a baixa “carga ideológica” que cultivaram para conquistar votos ao centro deram-lhe um vasto espaço de manobra e iniciativa — como as “candidaturas populares”. No seu congresso constituinte de Outubro, o Podemos fechou as portas a pactos com outras forças políticas. Hoje está na iminência de ter de fazer pactos com o PSOE, um dos partidos da “casta”, para derrotar o PP, “inimigo principal”. Os seus estrategos, Iñigo Errejón e Carolina Bescansa, defenderam a moderação programática perante a irrupção do partido Cidadãos, que lhe disputava o voto centrista. Inversamente, a corrente Anticapitalistas contesta essa “moderação programática” e os acordos com o PSOE.

Na noite eleitoral, Iglesias reivindicou as vitórias em Barcelona e Madrid, apontando as candidaturas de “unidade popular” como “os grandes momentos de transformação democrática” cujo “motor fundamental está nas grandes cidades”. Será o anúncio de uma estratégia de “colisão e ruptura” para as legislativas? Depressa o saberemos.

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