Compreender o processo de eleição do Secretário-Geral das Nações Unidas

Só no caso de haver fortes concessões à Rússia em questões como a guerra da Síria ou as sanções económicas devido à anexação da Crimeia, António Guterres terá o caminho aberto.

1. A eleição em curso do Secretário-Geral das Nações Unidas teve já um grande mérito. Entre nós muito poucos se interessavam por esta organização internacional. Hoje, tornou-se tema de conversa entre o cidadão comum. É verdade que já houve momentos esporádicos em que as Nações Unidas despertaram também grande interesse na opinião pública, mas estes foram relativamente curtos e rapidamente se dissiparam. As excepções ocorreram na década de 1990. Primeiro, quando Freitas do Amaral ocupou a presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1995. Depois no final dessa mesma década, em 1999, na altura do referendo em Timor Leste que levou à independência da Indonésia. Fora disso — e exceptuadas as resoluções do Conselho de Segurança ligadas às intervenções militares dos EUA e aliados, no Iraque e a Líbia —, as Nações Unidas são uma espécie de eclipse permanente.

2. As discussões emotivas que decorrem à volta da eleição do Secretário-Geral nem sempre são feitas com grande conhecimento do funcionamento da organização e do processo de escolha. O problema é amplificado pelo facto de, anteriormente, o assunto nunca ter despertado qualquer interesse entre nós. Quanto às razões do interesse actual são bem conhecidas: devem-se à candidatura de António Guterres ao cargo — uma candidatura forte, como têm mostrado as votações preliminares —, bem apoiada pelo Estado português. A circunstância de existirem, pela primeira vez, audições públicas dos candidatos bem como uma série de votações preliminares para fazer uma triagem dos candidatos, amplificou os equívocos na compreensão do processo de escolha. Importa ajudar à sua clarificação.

3. A eleição do Secretário-Geral tem de ser vista em três planos. Primeiro, o das regras jurídicas estabelecidas na Carta das Nações Unidas, às quais se podem juntar as resoluções da Assembleia Geral sobre o assunto. Segundo, o das práticas instituídas na organização por formas de funcionar enraizadas ao longo das várias décadas da sua existência. Tais práticas completam as situações omissas na Carta e nas resoluções da Assembleia Geral. Acrescem a isto as recomendações da Assembleia Geral relevantes para a eleição. Por exemplo, a questão de género entrou recentemente nos critérios de escolha do Secretário-Geral por esta via. Note-se que tais práticas, em particular as mais enraizadas nas Nações Unidas, poderão até ser vistas como uma espécie de direito consuetudinário, ou seja, baseado no costume. Terceiro, o das regras políticas, talvez mais apropriadamente o do jogo político dos actores estaduais com peso na decisão, seja por mecanismos formais ou informais.

4. Quanto às etapas do processo de escolha, resulta líquido o seguinte: (i) cabe ao Conselho de Segurança a recomendação à Assembleia Geral de quem deverá ser eleito; (ii) a recomendação de um candidato pelo Conselho de Segurança necessita de, pelo menos, nove votos favoráveis e de nenhum voto contra, ou seja, da ausência de veto de qualquer dos membros permanentes; (iii) a Assembleia Geral elege o Secretário-Geral com 2/3 de votos favoráveis. Menos líquido do ponto de vista da obrigatoriedade, mas uma prática reiterada e enraizada, é a escolha seguir um princípio de alternância entre grupos regionais. As Nações Unidas consideram oficialmente os seguintes: Ásia-Pacífico, África, América Latina e Caraíbas, Europa de Leste e Europa Ocidental e outros. A sua relevância é visível, por exemplo, no processo de escolha dos dez membros não permanentes do Conselho de Segurança. Um Estado que se candidate a membro não permanente — como já aconteceu com Portugal —, não está a disputar a totalidade dos dez lugares disponíveis. Está a concorrer, apenas, a um dos dois lugares destinados ao seu grupo regional. No caso português, a Europa Ocidental e outros. À questão dos grupos regionais acresce a já referida recomendação da Assembleia Geral pela igualdade de género, a qual favorece agora a escolha de uma mulher para o cargo.

5. Os grupos regionais das Nações Unidas dividem a União Europeia em dois. Entre os seus membros, onze Estados são do grupo da Europa de Leste. Quanto aos restantes dezassete, fazem parte do grupo da Europa Ocidental e outros. Ou seja, a União Europeia não é um bloco regional coerente nessa organização. A lógica que prevalece nas Nações Unidas amplifica as divisões europeias, as quais já tendem a surgir, mesmo sem isso, nas questões políticas mais importantes. Podemos argumentar que a existência de um bloco regional da Europa de Leste é um anacronismo da Guerra-Fria. É verdade. A sua explicação histórica remete para a antiga União Soviética e os seus aliados do Pacto de Varsóvia. Mas também é um anacronismo um Conselho de Segurança baseado num directório de potências vencedoras da II Guerra Mundial (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França), com um lugar permanente e direito de veto inscritos na Carta. E é um anacronismo ainda maior que potências médias e em trajectória global de declínio, como o Reino Unido e a França, mantenham um estatuto como se estivéssemos em 1945. Mas estas questões estão ligadas. Só serão ultrapassáveis num processo de reforma das Nações Unidas, algo que até agora se tem mostrado impossível.

6. Apesar das claras vitórias de António Guterres nas votações até agora efectuadas, são apenas uma fase preliminar de um processo de escolha. A fase decisiva vai decorrer a seguir, durante o mês de Outubro, podendo eventualmente prologar-se até ao final do ano. Nas votações, os membros permanentes poderão exercer o seu direito de veto. Em última instância, o poder da escolha do novo Secretário-Geral das Nações Unidas não está nos membros permanentes europeus do Conselho de Segurança — Reino Unido e França. Também não está na Alemanha e na sua chanceler, Angela Merkel que, não sendo membro permanente, tem o peso que se conhece na União Europeia e internacional. A escolha, em última instância, será feita por uma negociação entre as grandes potências mundiais (EUA, Rússia e China), especialmente EUA e Rússia. Os EUA porque são a maior potência com interesses globais. A Rússia porque sendo o principal Estado do grupo regional da Europa de Leste (que abrange mais de duas dezenas de Estados), sente-se com um direito natural a ter a última palavra na escolha. Considere-se, ou não, arcaica, a lógica instituída nas Nações Unidas é a da rotatividade dos cargos pelos diferentes grupos regionais, o que dá, também, um sentimento de legitimidade às pretensões russas.

7. Tanto quanto é possível saber nesta altura, António Guterres não é o candidato preferencial de nenhumas das grandes potências. Todas parecem entusiasmadas com a igualdade de género. A Rússia preferia Irina Bokova (da Bulgária); os EUA Susanna Malcora (da Argentina); a China terá preferência por Helen Clark (da Nova Zelândia). Quanto a António Guterres, o seu passado pró-atlantista (como Primeiro-Ministro); e pró-causas humanitárias e em defesa dos direitos humanos (como Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados), no mínimo não entusiasma a Rússia, nem a China. No pior dos cenários, pode valer-lhe o veto quando a escolha entrar na fase decisiva. Assim, só no caso de haver fortes concessões à Rússia — mas também a outras grandes potências nos seus interesses primordiais — em questões como a guerra da Síria ou as sanções económicas devido à anexação da Crimeia, António Guterres terá o caminho aberto. Por outras palavras, independentemente dos seus méritos políticos, da sua genuína preocupação com valores humanistas e do perfil adequado para o cargo, só terá hipóteses reais de ser eleito pelas más razões da realpolitik. Se isso ocorrer será irónico ver um candidato que assenta a sua campanha em valores ocupar o cargo devido a jogos de bastidores obscuros e a negociações maquiavélicas.

Investigador

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