Russos em Portugal tentam dissipar nevoeiro da guerra da informação sobre a crise na Ucrânia

Podem estar longe, mas seguem muito atentamente o que se passa na Ucrânia, país irmão, do qual não querem ser afastados. Lamentam a “guerra da informação” entre o Ocidente e a Rússia e lembram os laços que os unem à antiga República.

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“Ao mudar de canal de televisão muda-se o discurso e altera-se a linguagem”, diz Ekaterina Malginova Adriano Miranda/PÚBLICO

Olga Kazmina, 57 anos, é russa e mora em Portugal há 20 anos. Três dos seus cinco filhos nasceram cá e sentem-se portugueses, mas permanecem muito ligados ao que chama “alma russa”. Deixemos a tradutora explicar: “Camões deixou a namorada afogar-se, mas conseguiu salvar os Os Lusíadas. Um poeta russo nunca faria isso. Largava o manuscrito, escrevia-o melhor e salvava a namorada.” Diz-nos Olga que a “alma russa” se manifesta em “comportamentos em situações extremas”.

O PÚBLICO falou com vários russos a viver em Portugal para saber o que pensam sobre a crise na Ucrânia e sobre o papel do seu país e do seu líder, Vladimir Putin, que atravessam precisamente uma “situação extrema”.

Voltemos à “alma russa”, tal como Olga a entende. “É não fazer a separação entre as pessoas, estar bem com toda a gente”. Ouvindo os comentários dos líderes ocidentais sobre a situação na Ucrânia, que acusam a Rússia de estar a promover a desestabilização do país vizinho com o intuito de o trazer para a sua esfera de influência, pode tornar-se difícil acreditar que a “alma russa” entre na política externa do Kremlin. Os russos dizem que se trata de desinformação. Falam de russofobia da Europa e dos EUA.

“Há uma clara distorção de informação”, observa Ekaterina Malginova, estudante de 23 anos na Universidade de Coimbra e que vive em Portugal desde 2001. “Ao mudar de canal de televisão muda-se o discurso e altera-se a linguagem. Não se sabe em quem acreditar.” A ideia de que existe uma “guerra de informação”, nas palavras de outra russa entrevistada pelo PÚBLICO, é transversal.

Alice Coelho, nascida há 31 anos na Rússia, filha de pai português e mãe russa, admite que já teve uma opinião “mais bem formada”. “Comecei por ver as notícias em Portugal e achei que a informação não era suficiente. Fui pesquisar em várias fontes na Internet, na televisão russa e em sites russos e ucranianos”, explica-nos.

Perdido no meio da batalha pela informação está também Evgeny Zhidkov, 21 anos, em Portugal há nove. “Cá na Europa é tudo americanizado, nos canais russos também mentem muito, ou seja, não há em quem acreditar.”

Para Ekaterina, “a informação real será efeito do tempo” e “apenas daqui a uns anos veremos reveladas as verdades”. Para já, persistem as duas narrativas dominantes. O Ocidente acusa a Rússia de invasão do território ucraniano. A aluna de Estudos Europeus pensa de outra forma: “A Rússia não invadiu, a Rússia está presente.”

“A Rússia nasceu de Kiev”
Subtilezas da linguagem, diriam alguns, mas a verdade, afirmam, é que as relações entre a Rússia e a Ucrânia são pejadas de nuances que o Ocidente não consegue entender. Olga vai às fundações da Rússia para começar a explicar de onde vem a ligação entre os dois territórios. “A Rússia nasceu de Kiev, por isso todos os russos acham que é a pátria, que vêm de Kiev, de onde vêm as nossas raízes.” E é por isso, diz, que “nunca será possível separar completamente os russos da Ucrânia”. Em jeito de provocação, a tradutora lembra algo: “Até temos na parte Leste da Ucrânia uma cidade chamada Nova Moscovo.”

Há uma ligação quase umbilical entre os russos e os ucranianos, que se manteve mesmo depois do colapso da União Soviética e da independência da Ucrânia. Diz Alice que “não se vai para a Ucrânia como se fosse para o estrangeiro, é como se fosse na Rússia”. Muitos russos têm familiares no país vizinho e vice-versa. “Podem ser considerados ucranianos no passaporte, mas as raízes de muitos ucranianos são mistas, muitas vezes russas”, sublinha Veronika Dankova, 55 anos, professora do ensino básico e secundário, a viver há três décadas em Coimbra. Temem que o afastamento da Ucrânia em relação a Moscovo tenha repercussões nessas ligações familiares.

 “Há quem queira apresentar-nos como inimigos, mas é mentira”, afirma Nina Guerra, de 64 anos e tradutora para português de alguns dos clássicos russos mais conhecidos. Sente que “uma desgraça chegou à nossa casa”. “Os bancos contam lucros e prejuízos, as estimadíssimas organizações internacionais tomam as suas decisões, cada vez mais absurdas na minha opinião, os defensores da democracia preparam novas matanças com fins humanitários, e ali, na Ucrânia, já estão a matar pessoas desarmadas que se atreveram a protestar.”

O Ocidente apressou-se a saudar a queda do regime de Viktor Ianukovich, depois de quase três meses de protestos na Praça da Independência, em Kiev. Entre os russos, fala-se de “golpe de Estado” levado a cabo por fascistas que apenas queriam o poder. “Uma revolução é uma mudança fundamental do regime político, e isso não aconteceu”, observa Alice Coelho, que diz que apenas foi substituído um grupo de “oligarcas bancários” por outro.

“O único problema agora é que quem está no poder é a extrema-direita, que está a ganhar muita força”, diz a luso-russa que veio para Portugal há 12 anos. Olga fala em “revolta fascista” e Ekaterina, a estudante de Coimbra, lembra a “situação de desordem total” em que ficou o país.

É neste contexto que surge o pedido de auxílio pelas autoridades da Crimeia à Federação Russa e que levou ao referendo no mês passado e à integração do território. “Não vejo uma maneira mais justa de conhecer a opinião dos dois milhões de pessoas que vivem na península”, afirma Nina Guerra. A “irritação” do Ocidente não a surpreendeu. “A opinião do povo, na política internacional, há muito que é considerada irrelevante, sobretudo quando não corresponde a certos planos e interesses.”

A Crimeia fez parte da Rússia desde o século XVIII, quando foi anexada pela czarina Catarina, a Grande, e passou para a Ucrânia apenas em 1954, fruto de um “capricho” de Nikita Kruschov, diz a tradutora. E, por isso, “a Rússia devolveu apenas aquilo que era da Rússia”, considera por sua vez Evgueny.

Sanções não assustam
Desde então, o Ocidente tem respondido através da aplicação de sanções a altos responsáveis russos, com o objectivo de dissuadir Moscovo de continuar a desestabilização da Ucrânia, por via da pressão económica. Mas não é algo que preocupe muito os russos, que manifestam uma confiança inabalável na capacidade de resposta do seu país e do seu líder.

“A Rússia vai procurar outros caminhos e outras oportunidades”, diz Olga. Por seu lado, Alice Coelho viu nas consequências das sanções uma oportunidade, quando as acções de algumas empresas russas caíram e cerca de 30% foi recuperado por capitais russos. “A Rússia está interessada em criar a sua própria economia, fazer um banco que funcione apenas em rublos”, afirma. E não tem dúvidas: “A Rússia não vai perder se se separar da economia global, a economia global é que vai perder se se separar da economia russa.”

Ao leme está Vladimir Putin, que o Ocidente acusa de estar a perseguir objectivos imperialistas para construir uma União Euroasiática, que abranja várias ex-Repúblicas Soviéticas sob a égide de Moscovo. É na imagem do ex-espião do KGB que se concentram os receios ocidentais, por um lado, e as esperanças russas, por outro.

“Putin tem muita gente que o odeia e muita gente que o respeita”, nota Veronica Dankova, que o considera “um grande líder”. As acusações que lhe fazem são fruto de uma “russofobia” e “muitas vezes são gratuitas, não são baseadas em nada de concreto”. A professora diz ser “muito difícil lutar contra aqueles que querem denegrir, porque vão sempre encontrar estratégias para isso.”

Admiram a gestão que faz Putin de um país tão vasto e complexo. “Sabe qual foi a estratégia de Putin para retirar do poder os criminosos?”, questiona Olga, explicando que por criminosos quer dizer oligarcas. E segue para a explicação: “Cada candidato para os órgãos de poder local devia ser aprovado pelas organizações sem fins lucrativos, que é o povo, e não é possível comprar o povo, por isso só passavam as pessoas com quem o povo simpatizava.”

Apesar de estarem distantes, no seu dia-a-dia a situação na Ucrânia não é esquecida. Debatem entre si, com portugueses e mesmo com ucranianos. Alguns têm até familiares na Ucrânia. É o caso de Ekaterina, que tem uma avó ucraniana, a morar na cidade de Vinítsia, com quem está preocupada. “Viu a sua reforma ‘por um fio’, uns míseros 90 euros. Vê a população em alvoroço e os jovens sem esperança, crentes num futuro ‘cor-de-rosa’ na União Europeia.”

Evgueny diz que mais de 90% dos seus amigos são ucranianos e nunca teve qualquer problema com eles. “Somos da mesma terra, não interessa de que país és. Temos de ser unidos e ajudar uns aos outros, só assim é que conseguimos atingir alguma coisa.” Devido à sensibilidade do tema, Veronica prefere não o abordar com os ucranianos que conhece, apenas “se a pessoa quiser falar ou dar a sua opinião”. Mas com amigos portugueses vai falando, “sempre no sentido de esclarecer”. “Tento sempre ajudar, sem tentar convencer alguém do contrário.”

No meio da crise, Nina Guerra consegue encontrar alguns aspectos positivos. Um deles, diz, é “o sentimento de solidariedade que toda esta situação horrível despertou entre os russos e os ucranianos”. Discutem e debatem, mas concordam num ponto: “Não admitimos guerra e não admitimos a ditadura dos nazis.” “Tenho amigos ucranianos aqui e na Rússia, e acredite que agora esta amizade se tornou ainda maior.”

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