Coisas simples

A resposta generosa dos cidadãos europeus não é substituto para uma política de asilo por parte dos estados.

Quando se escreve regularmente num jornal acontece que as pessoas nos perguntem como conseguimos arranjar tema para escrever todas as semanas.

É natural que quem não tem a escrita como ofício possa angustiar-se perante a possibilidade de não saber o que escrever na página branca, mas quem escreve por gosto, por hábito e por vício nunca tem esse problema. Basta ver um telejornal para as histórias nos saltarem aos olhos, basta passear pelas ruas para os temas nos agarrarem pelo pescoço. Seria preciso ser indiferente para não encontrar gestos a denunciar. Seria preciso ser desprovido de desejo para não encontrar ideias a partilhar. Nunca são os temas que faltam. A escolha pode ser difícil, mas é uma dificuldade menor. A dificuldade maior é quando não se sabe o que dizer. Quando aquilo que queremos dizer, que sabemos que é urgente dizer, nos parece pouco, dramaticamente pouco, quase inútil, perante a enormidade do que se quer mudar.

O que escrever sobre a crise dos refugiados da Síria, da Eritreia, do Afeganistão, do Iraque, do Darfur, da Somália, da Líbia que tentam fugir da guerra e encontrar refúgio na Europa e dos milhares de mortos que lançou nas nossas costas? O que dizer da forma vergonhosa como os líderes políticos da União Europeia (com a honrosa excepção da Alemanha) têm “gerido” esta crise humanitária?

Como falar da morte de Aylan Kurdi sem falar da morte do seu irmão de cinco anos, sem falar da morte de tantos milhares de crianças iguais a eles, mesmo quando a cor da pele é um pouco mais escura? Como falar de todas as crianças que tiveram de morrer antes que os dirigentes europeus (e não todos) suavizassem a sua abjecta política da fortaleza-Europa? Como falar da hipocrisia da pseudo-política de acolhimento que, pressionados pelas suas opiniões públicas, tantos políticos europeus dizem agora defender?

O que dizer, o que repetir? Dizer coisas simples, repetir o necessário.

Dizer que estas crianças são os nossos filhos porque as crianças são filhas de todos, mesmo quando são sírias, e que não queremos que os nossos filhos morram a fugir da guerra.

Dizer que a UE tem de assumir as suas responsabilidades porque agiu, activamente ou por omissão, para desencadear e alimentar os conflitos que geraram estes refugiados e que tem de assumir essas suas responsabilidades na cena internacional, no terreno em cada um destes países, para lhes pôr fim da forma mais expedita possível, trabalhando com todos os países, todas as organizações internacionais e nacionais e com todas as forças necessárias em vez de fazer declarações inócuas aos microfones nos salões de hotéis de luxo.

Dizer que a UE e a comunidade internacional têm não só de agir diplomaticamente para pôr fim à guerra mas de apoiar o desenvolvimento económico e social dos países actualmente em guerra, por razões que são não apenas humanitárias mas de segurança e interesse próprio, porque é bom para todos que seja possível viver nesses territórios.

Dizer que a UE e a comunidade internacional têm de fornecer o financiamento e apoio necessário a organizações como o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e às ONG humanitárias para que estas possam agir no terreno e, nomeadamente, possam proporcionar aí o necessário apoio aos refugiados.

Dizer que a UE tem de definir uma política generosa de apoio aos refugiados e de a pôr em prática em todo o seu território, apoiando os países de entrada como a Grécia, Malta e Itália e criando as condições para a recepção, acolhimento e instalação dos refugiados.

Dizer que a crise dos refugiados mostrou mais uma vez a hipocrisia da maioria dos políticos europeus, com o governo húngaro de Viktor Orbán a mostrar a sua faceta fascista perante a indiferença de Bruxelas e com a maioria dos governos a tentar espalhar o medo e a mentir descaradamente sobre os números e os riscos do acolhimento de refugiados.

Dizer aos media que a história dos refugiados não se pode contar apenas sob a forma de notícias que dizem quantos morreram e quantos chegaram ontem e hoje, mas tem de ser contada referindo as causas do fenómeno (fala-se dos refugiados mas deixou de se falar dos conflitos que geraram estes refugiados e das atrocidades de que eles fogem) e referindo os culpados por esses conflitos (mesmo quando se fala dos conflitos nunca se fala do que se faz para lhes pôr fim, como se eles se tivessem tornado uma fatalidade).

Dizer enfim que, se a resposta generosa dos cidadãos europeus, organizando-se para ajudar e receber refugiados e manifestando-se em favor do apoio aos refugiados,  mostra que a ideia de solidariedade não está morta na Europa, ela não é substituto para uma verdadeira política de asilo por parte dos estados nem para a definição de políticas de asilo ao nível da UE, devidamente financiadas pelos dinheiros públicos - que não podem servir apenas para servir os mais ricos, deixando aos cidadãos e organizações privadas a realização da política de solidariedade.

 

Candidato independente às eleições legislativas pela coligação cidadã Livre/Tempo  de Avançar (jvmalheiros@gmail.com)

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