Acabou a guerra, mas os colombianos estão divididos sobre o que se segue

"Acabou a guerra com as FARC", declarou à meia-noite o Presidente colombiano. Guerrilheiros preparam agora entrega das armas e futuro da organização.

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Guerrilheiros das FARC em patrulha numa zona montanhosa da Colômbia John Vizcaino / Reuters

O primeiro cessar-fogo bilateral e definitivo acordado entre o Governo e os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) entrou esta segunda-feira em vigor, aplaudido pelos dois lados do conflito.

A primeira ordem tinha sido dada pelo Presidente Juan Manuel Santos na quinta-feira para que todas as operações da Força Pública, composta por 480 mil efectivos, terminassem. À meia-noite em ponto (mais seis em Portugal continental), Juan Manuel Santos anunciava no Twitter “acabou a guerra com as FARC!”.

No domingo foi a vez do comandante da guerrilha de inspiração marxista Rodrigo Londoño Echeverri, nome de guerra "Timochenko”, garantir o cumprimento do fim das hostilidades pelos mais de 15 mil homens e mulheres ao seu comando. Não há confrontos desde Julho de 2015, altura em que as FARC declararam um cessar-fogo unilateral.

O cessar-fogo é “talvez a melhor notícia que  a nossa nação receeu nos últimos cem anos”, disse o ministro da Defesa, Luis Carlos Villegas, que acrescentou que a data da assinatura formal do acordo será "entre 20 e 26 de Setembro".

Talvez como poucas pessoas, Norma Gutiérrez sabe o que é sofrer com este conflito. Foi casada duas vezes e teve quatro filhos — e todos morreram às mãos de guerrilheiros das FARC. "Esperava este dia com muita ansiedade e há já muitos anos", diz ao El Español. "Ainda parece que não é real, é como estar num sonho."

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Permanecem, contudo, alguns riscos, quer da parte de outras guerrilhas como o Exército de Libertação Nacional, que podem ver no recuo das FARC uma oportunidade para assumirem mais poder, quer de alguns sectores dissidentes da própria guerrilha, que não concordem com o rumo seguido pelo comando-geral. "Aquele que saia da linha do acordo enfrentará todo o peso do Estado, que irá combater a quem não cumpra o acordado", disse já esta segunda-feira Humberto de la Calle, um dos principais negociadores do governo.

Em Março, o governo e o ELN manifestaram vontade em entabular negociações, mas não foi marcada qualquer data para que as conversações tenham início. O grupo, que também defende uma doutrina próxima do marxismo, possui um contigente de 1500 elementos e, no domingo, publicou um comunicada em que deseja "boa sorte" às FARC no seu processo de conversão em "organização ou movimento político legal".

Colombianos divididos

A aplicação do cessar-fogo bilateral, definitivo e incondicional — que tinha sido formalizado em Junho — marca o desenvolvimento mais significativo da conclusão do processo de paz iniciado há quatro anos em Havana, mediado por Cuba e pela Noruega. O próximo passo está agendado para 2 de Outubro, data do referendo em que os colombianos são chamados a pronunciar-se sobre o acordo de paz.

Os colombianos parecem divididos quanto à apreciação do acordo de paz. A última sondagem publicada pelo jornal El Tiempo dava uma vantagem de apenas três pontos ao "sim" ao acordo. Para que seja válido, para além de ter um apoio superior ao "não", o "sim" deve recolher pelo menos 4,4 milhões de votos (13% do eleitorado).

Os guerrilheiros têm depois um período máximo de 180 dias para entregar as armas e desfazerem-se dos uniformes militares, num processo que será monitorizado por 500 elementos da ONU. Há 28 locais, pré-acordados com o Governo, onde os membros das FARC se devem apresentar para que a desmobilização seja concluída. Para tal, estão assegurados “corredores humanitários”, diz o El Tiempo.

Será assim encerrado o capítulo militar das FARC, que tem pela frente um futuro como organização política. Entre 13 e 19 de Setembro, as FARC organizam a sua décima conferência, que pela primeira vez não será feita na clandestinidade e onde serão planeados não sequestros ou atentados, mas sim uma acção política. Um sinal importante é a abertura a 50 convidados, bem como à imprensa.

Apesar do significado profundo do cessar-fogo, vão longe os anos mais sangrentos do conflito que em meio século matou mais de 200 mil pessoas, fez quase 80 mil desaparecidos e obrigou mais de 6,6 milhões a abandonarem as suas casas. Desde que o processo de paz foi lançado que o número de vítimas tem caído. No ano passado foram mortas 146 pessoas, escreve o El País.

O acordo de paz progrediu ao longo de seis etapas, que incluíam diferentes aspectos que dividiam governo e guerrilha, incluindo a reforma agrária, o narco-tráfico, ou a reparação dos danos das vítimas. Assim que um acordo era alcançado num destes capítulos, avançava-se para o seguinte até culminar no cessar-fogo bilateral.

Permanecem, no entanto, divergências no seio da sociedade colombiana quanto ao processo de paz. Os partidários da linha seguida pelo ex-Presidente Álvaro Uribe defendem uma linha mais dura e foram sempre muito críticos das negociações de Havana. Os mandatos de Uribe (2002-2010) foram marcados por uma forte militarização do conflito com as FARC, a que não faltaram escândalos como o dos "falsos positivos" — execuções extrajudiciais levadas a cabo pelas Forças Armadas com o objectivo de preencher as quotas de baixas exigidas pelo governo.

Uribe, que se mantém muito activo e influente na política colombiana como senador, veio propor recentemente a organização de um "tribunal nacional para a paz" ao arrepio do acordo de Havana, onde, diz o ex-Presidente, reina a "impunidade".

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