Cercada e deixada à sua sorte, Kobani vai lutar até ao fim

Ataques aéreos atrasam, mas não impedem avanço dos jihadistas. É cada vez mais certo que ninguém irá em auxílio da cidade curda, prestes a ser conquistada pelo Estado Islâmico.

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Refugiados assistem aos combates Umit Bektas/Reuters

Durante mais de dois anos, Kobani foi um pequeno oásis no pesadelo da guerra síria. Controlada pelas Unidades de Protecção Popular (YPG), a milícia do principal partido curdo da Síria, a cidade foi poupada ao conflito, acolhendo milhares de deslocados que ali encontraram refúgio – árabes, curdos, turcomanos. Agora o inferno é ali, à vista do mundo e dos seus habitantes que, aterrorizados pelo avanço do Estado Islâmico, se refugiaram na Turquia, mas que continuam a não querer afastar-se da fronteira na esperança, cada vez mais vã, de que Kobani não será tomada e eles poderão regressar a casa.

São, nos cálculos das autoridades turcas, cerca de 200 mil os que desde o dia 16 de Setembro atravessaram a fronteira, fugindo da cidade que se ergue mesmo ali ao lado da vedação. Os últimos dois mil chegaram na segunda-feira, o dia em que os jihadistas conseguiram furar as defesas e hastear as primeiras bandeiras negras sobre Kobani. No dia seguinte, os aviões norte-americanos redobraram os bombardeamentos, atingindo as posições dos radicais que vão conseguindo identificar entre o emaranhado de edifícios.   

Mas o Estado Islâmico tem os blindados, as metralhadoras pesadas e os morteiros que saqueou aos exércitos da Síria e do Iraque, enquanto o YPG conta apenas com armas ligeiras e munições que vão escasseando à medida que o cerco se arrasta. “Os ataques aéreos por si só não são suficientes para salvar Kobani. Sabemos disso”, admitiu o almirante John Kirby, porta-voz do Pentágono, num momento em que Washington e Ancara se dedicam ao jogo do empurra sobre quem recai a responsabilidade de ir em auxílio da cidade curda.  

“Apesar da resistência feroz das forças curdas, o Estado Islâmico avançou e controla mais de um terço de Kobani”, anunciou o director do Observatório Sírio dos Direitos Humanos, Rami Abdel Rahman, adiantando que os jihadistas dominavam os bairros mais a leste e uma parte dos sectores nordeste e sudeste. Rahman, que desde 2011 monitoriza a situação na Síria através de uma rede de activistas no terreno, contou à AFP que os radicais “avançam lentamente” devido à resistência da guerrilha e aos ataques aéreos, mas durante a madrugada conseguiram apoderar-se de um quartel das forças de segurança no Nordeste da cidade e aproximavam-se de uma zona onde estão concentrados vários centros de comando das forças que defendem a cidade.

Os jornalistas que assistem aos combates do outro lado da fronteira – desde que o cerco à cidade se fechou que não há repórteres estrangeiros em Kobani – contam que os aviões da coligação atacaram por várias vezes as posições dos radicais, mas ao final do dia a situação continuava desfavorável para as forças sitiadas.

Da cidade têm chegado pedidos desesperados de ajuda que, à excepção dos bombardeamentos mais intensos, continuam sem resposta. “Não seria realista esperar que a Turquia avançasse sozinha com uma operação terrestre contra o Estado Islâmico”, disse nesta quinta-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Cavusoglu. O mesmo sinal foi dado pelo secretário de Estado norte-americano, John Kerry, que na mesma frase em que classificou de “tragédia” o que está a acontecer em Kobani garantiu que o avanço dos jihadistas não vai desviar a coligação da estratégia fixada. Na véspera, tinha já dito que impedir a queda de Kobani “não era um objectivo estratégico” dos EUA e dos aliados.

Cercados, isolados e abandonados à sua sorte pelos cálculos estratégicos de quem poderia ir em seu auxílio, os guerrilheiros curdos garantem que não vão fugir em debandada, nem baixar as armas, enquanto houver balas para disparar e combatentes capazes de lutar. “Ou vencemos, ou morremos. Mas vamos resistir até ao fim”, garantia na terça-feira à AFP Esmat al-Sheik, comandante das forças que defendem a cidade.

Terá sido essa a decisão de Arin Mirkan, uma combatente do YPG que no domingo se fez explodir quando ficou cercada, já sem munições, na frente leste da cidade, naquele que é o primeiro ataque suicida atribuído a uma mulher curda na guerra da Síria. “Para não ser morta, ou, pior ainda, ser feita prisioneira, preferiu lançar-se contra os atacantes”, usando a única arma que lhe restava, o seu corpo, contou uma camarada nas redes sociais. O YPG assegura que “o ataque heróico” matou “dezenas de jihadistas”.

Entre os que atravessaram a fronteira, há quem queira regressar para combater e peça armas e muitos que, mesmo aterrorizados com o que viram, só pensam em voltar o quanto antes. Entre eles está Amira, uma curda que a BBC encontrou há dias sentada junto à fronteira, de olhos perdidos no vazio e rodeada pelos três filhos pequenos. Não procurou abrigo, não quis ser registada como refugiada e garantia que dali só sairia quando fosse seguro regressar a Kobani.

Na mesma fronteira, o enviado do jornal Guardian encontrou Mostafa Kader, um sírio que fugiu com a mulher e os dois filhos de uma aldeia nos arredores de Kobani. Chorava a morte de um tio de 85 anos, que recusou fugir e foi decapitado, e da cunhada e de uma sobrinha de oito anos, violadas e mortas pelos jihadistas. “Se eu soubesse que era isto que o futuro me reservava, nunca me teria casado. Teria sido melhor morrer a combater em Kobani.”

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